Calma aí, pessoa. Você acha que pode se dizer aliade das populações trans e travestis, mas seguir consumindo conteúdo de artistas e autores que, nitidamente, usam de sua projeção para caçar nossos direitos e existências?
Ultimamente tem sido veiculado esse discurso de que “devemos separar o autor da obra”, especialmente quando se trata de produções que marcaram gerações cujas autorias se revelaram pessoas horríveis. Sinceramente, trata-se de uma das maiores bobagens que já ouvi. E isso não tem nada a ver com cultura do cancelamento. É sobre coerência, sobre que projeto de sociedade apoiamos.
As produções artísticas, filmes, séries, animações, jogos, não são neutras, mas produzidas no interior de uma lógica de pensamento e vociferadas por agentes, atores sociais, em contextos de poder específicos.
O que a gente não pode é se prender em uma alienação e achar que o dinheiro que direcionamos para essas iniciativas – seja efetivamente comprando seus produtos, seja através de apoios indiretos – não beneficie as agendas nacionais e internacionais que atentam contra determinados segmentos da população.
No contexto em que vivemos, de um mundo globalizado e de um neoliberalismo selvagem, precisamos enxergar o peso que nossas decisões e, aqui especialmente, nossos hábitos de consumo, carregam. Gostar muito de um livro ou filme NÃO É salvo-conduto ético para apoiar transfobia. Ou você é a favor dos nossos direitos, ou financia quem é contra eles.
Tomando o exemplo da J.K. Rolling, autora da saga Harry Potter, você sabia que ela abriu um fundo chamado “Women’s Fund” para ajudar financeiramente mulheres cis em iniciativas de expulsão da pessoas trans de espaços sociais?
Isso mesmo, se somando a crescente onda global de perseguição aos direitos de nossas populações, este fundo tem por finalidade conceder apoio em processos que visem excluir o público trans de banheiros, esportes, empregos, entre outros. E, sinceramente, há muita gente que se diz “feminista” apoiando atrocidades como estas.
Não me levem a mal. Eu também fui uma adolescente que cresceu com Harry Potter. Tinha sim uma relação de carinho com esse universo.
Mas eu me recuso a simplesmente fechar os olhos para a realidade. Não podemos achar que vivemos apartades do que acontece a nosso volta no mundo. O processo de desenvolver senso crítico inclui revisitar nossos gostos e também refletir sobre eles.
Nesse sentido, a transfobia de J.K. Rolling foi responsável pela ruptura com uma obra que gostava muito. Assim como as posições de vários outros artistas e autores que me acompanharam ao longo da vida. É lógico que eu sinto alguma vontade de ver essa nova série (que J.K. inclusive está na produção), que eu tenho desejo de jogar Hogwarts Legacy – um jogo lançado recentemente dentro do universo de Harry Potter.
Contudo, como uma pessoa que reconhece e reivindica o efeito de minhas ações no mundo em que vivo, uma participante ativa na construção da realidade prática do dia a dia, eu abdico. Não será com minha cumplicidade que tentarão massacrar nossas existências.
Talvez sozinha meu movimento sequer faça cócegas no império que autores como Rolling vêm construindo. Mas juntes, como força coletiva, podemos produzir real efeito.
Este é um convite à coerência e à ação política na vida cotidiana. J.K. Rolling é somente um exemplo das múltiplas iniciativas que atentam contra nossas vozes e vidas. Que possamos construir uma nova realidade. Porque podemos.

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.