Leio, nas mídias que visito, uma fala (distópica) de um sujeito alcunhado ‘rei do ovo’ (Ricardo Faria). O tal ‘rei’ asseverou ser um ‘desastre contratar no Brasil’, pois as pessoas estariam ‘viciadas no bolsa família’.
Não conheço nenhum ‘rei’ e não seria, justamente, o do ‘ovo’ a capturar minha atenção. Todavia, sua fala reproduz violência de classe que, no atual estágio de nossa civilização, faz aumentar a distância entre os que tem muito (caso dos verdadeiros ‘reis’) e os que não tem nada ou quase nada.
Não faz bem, portanto, quer ao tecido social, quer à minha formação cidadã, externar e aturar um preconceito dissociado da realidade, notadamente se este vem alinhado ao ideário fascista, onde as pessoas tendem a ser medidas pela utilidade e não pela grandeza própria de bem viver.
Não vou entrar no mérito do extraordinário acerto político do bolsa família, tampouco de sua transformação significativa ao longo do tempo – de ferramenta incipiente de transferência de renda à vetor econômico – até porque quem reconhece o programa é o mundo e todas as instituições e medidores sociais já se manifestaram rendendo loas ao modelo implantado pelo governo Lula ainda em seu início (2003).
Deveras e não por acaso, o bolsa família é considerado um dos principais programas de combate à pobreza de todo o mundo, chegando a ser considerado pelo conceituado jornal britânico The Economist enquanto ‘esquema anti-pobreza originário da américa latina que se esparramou pelo mundo’.
Por igual e nesta linha o francês Le Monde asseverou: ‘o programa bolsa família amplia, sobretudo, o acesso à educação, a qual representa a melhor arma, no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, contra a pobreza’.
Mutatis mutandis, o que me incomodou foi o fato de um sujeito que está vários degraus acima da linha econômica do homem médio, dar voz a uma bobagem elitista desta natureza e não se atentar para suas consequências, como que aplaudindo um determinismo histórico anacrônico que subjuga pessoas, reduzindo-as à uma solitária condição utilitária…
Assim é que esse olhar de exclusividade do ser humano enquanto mão de obra, identificando-o em face de sua capacidade de produzir, resumindo o mundo e a vida aos interesses da elite econômica, não é senão um vômito neoliberal que recepciona a pauta fascista – convocada cada vez que há crise no seio do grande capital…
‘O seu ‘rei’, vê se te orienta, já sabem de seu furo, nego, no imposto de renda’, diria o Raul ao bufão do ‘ovo’ que compõe nossa ciranda medievo econômica, naquilo que desconstrói o homem que vende a própria força de trabalho, reduzindo a mais valia explorativa a uma estrada sem volta, onde o explorado não faria senão cumprir seu destino de produzir fortuna alheia – porquanto, em causa própria, somente poderiam ser considerados os donos do modo de produção…
Então, seu ‘rei’, vou lhe responder: o trabalhador pobre a quem você se referiu enquanto ‘viciado em bolsa família’, tem o direito (sagrado) de se viciar em qualquer das vicissitudes que a vida pronuncia, naquilo que a vida de quem vende a força do próprio trabalho, assim como a vida de quem explora essa força, pertence a quem a detém – sob nosso céu e o azul do oriente.
Daí que a ‘opinião’ sobre o tema, por não ter qualquer apego ou arrimo científico, não é senão a sua opinião – motivo pelo qual, muito provavelmente, seu ‘reinado’ não vá além dos ovos que o delimitam…
Ovos de fora, fica a dica a você que acredita ser conhecedor de um qualquer tema alinhado as mazelas produtivas do mundo no século XXI: pense antes de falar e conheça do que fala o suficiente para ter uma ‘opinião’, notadamente se esta vem colocada no universo do esforço alheio e em polo de convívio com a exploração de mais valia que permeia a equação sugerida.
Para além disso, é bom que se esclareça, vez por todas: o bolsa família iniciou-se enquanto ferramenta de transferência de renda sim, mas há algum tempo já é visto e reconhecido como verdadeiro vetor econômico, naquilo que tem feito girar a economia de muitos rincões isolados no Brasil de meu Deus, onde não há intenção privatizante, naquilo que as demandas que se anunciam são do talante das que fazem a terra invadir o espaço entre a unha e a carne dos dedos, demandando esforço desmedido e glamour zero.
Noves fora, também é passada a hora de nós outros nos desviarmos de futilidades e pararmos de dar voz a quem não pensa antes de falar e, em pensando, não completa um raciocínio, por absoluta falta de conhecimento – seja da vida, seja da história…
Não que a estupidez se convole em um qualquer descarte da cidadania, suposto que pode, ela, ser uma condição orgânica – neste caso seu receptor é um ser elevado e merecedor.
Todavia e em casos equivalentes ao que aqui esgrimimos – onde um bilionário posa de conhecedor das mazelas da alma humana e se põe a criticar a exploração da força de trabalho alheia, pelo viés de sua própria perspectiva ética desconstruída – o que de melhor podemos fazer é não dar voz à ignorância…
Encerrando e para não perdermos ainda mais tempo: manja aquela intenção de convocar o senador sergio moro para uma palestra sobre estado de direito, ética e moral? Então, é da mesma natureza que a de ouvir o bronco ‘rei do ovo’ sobre exploração de mão de obra. Serve a nada e atrapalha a construção de pontes sociais que nossa natureza reclama…
Tristes trópicos, onde mais não é menos e menos segue sendo mais!
Saudade Pai.

João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.