Esse texto foi escrito como uma carta para meu avô, Waurides, pai de meu pai, sob o título inicial de “Carta ao meu Avô”. É certo que é algo extremamente pessoal e até íntimo. Ao mesmo tempo tem um tom político, um sentido coletivo, que espero ser notado.
Reconhecendo que tantos outros corpos trans certamente também vivenciam situações análogas, sinto que compartilhar tal carta neste espaço pode contribuir com as relações destas pessoas com suas famílias. Que minhas palavras possam representar-lhes. E a vocês, famílias, dedico:
Oi, vô.
Aqui é a Ursula.
O senhor deve ouvir falar mais de mim, por sua esposa ou meu pai, como Urse. Mas, cá entre nós, eu prefiro Ursula.
Tem algumas coisas que eu quero falar com o senhor há alguns anos e esse foi o meio que encontrei para comunicar.
Eu sou uma travesti, vô. Talvez o senhor conheça essa palavra como um termo pejorativo, ou algo negativo, mas queria te contar que não é. Eu sei que é diferente, algo com o qual nunca teve contato, mas é quem eu sou.
Sinceramente, não é sobre a roupa que eu visto, é muito mais sobre como eu me coloco no mundo. As roupas são uma forma de expressar isso, e o senhor já deve ter me visto de vestido, mas também de camisa e calça jeans. Nenhuma destas opções me torna mais ou menos travesti.
Queria dizer também que não odeio o nome que meus pais me deram. Sei que havia uma referência ao nome do seu pai, e eu sempre achei particularmente muito bonito. Mas desde que eu encontrei palavras para dizer quem sou, eu entendi que não me cabia. Foi então que eu encontrei Ursula. Já faz alguns anos que eu alterei nos documentos.
Desde criança, eu sempre fui diferente, eu sempre me considerei diferente. Descobrir que eu não era um homem, uma possibilidade que só conheci no início dos meus 18 anos, fez sentido com o que eu sempre fui. A escolha por outro nome, formas de tratamento femininas, por roupas que como “menino” eu nunca poderia usar, são apenas aspectos da expressão de quem eu sou.
Mas também digo ao senhor que não sou alguém diferente de quem conheceu na minha infância e adolescência. É lógico, eu mudei, como todos mudamos. Cresci. Só que ter mudado de nome, pedir para ser tratada de outra forma, não significa que eu seja outro alguém. Ainda sou a mesma pessoa, só me encontrei em uma outra roupagem, digamos assim.
As vezes pode lhe parecer confuso ou complexo, mas é mais simples do que parece. A minha forma de ser e estar no mundo é essa, essa sou eu. Não exijo tratamento diferenciado, privilégios ou mais direitos do que qualquer outra cidadã brasileira. Ao contrário, muitas vezes vejo que tenho que me esforçar ainda mais, para que não sobre margem para me desqualificarem pela minha identidade.
Vô, eu sei que o senhor me ama, e as vezes só não entende determinadas coisas porque não conviveu com elas durante a vida. Mas pessoas como eu sempre estiveram por aqui. E eu estou aqui para lhe responder se tiver alguma questão, com o respeito que eu não tenho dúvidas de que certamente já teria.
Saiba que eu te amo.
Com carinho,
Ursula

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.