Falando sério, por que essa mania bizarra de fingir surpresa com crianças trans simplesmente existindo? Falam de invenção moderna, culpa da internet ou da TV. Tem até esse discursinho batido de que “algum adulto colocou isso na cabeça delas”. Quanta ignorância cabe numa fala como essa?
Crianças trans não são fruto de influência e sim vítimas de uma sociedade covarde que só quer lidar com quem cabe nos seus moldes cisnormativos. E quem não cabe deve ser eliminade, escondide, corrigide, empurrade para as margens. Porque só assim as pessoas evitam olhar no espelho da própria intolerância. As vidas de crianças trans por si só questionam esse ideário limitante, expõem a contradição da norma, relevam que não é homogênea.
Aí alegam que “criança não tem idade para saber o que quer”. Curioso – só dizem isso quando a criança foge das expectativas cisgênero. Quando é para seguir o time de futebol ou a religião dos pais, aí tudo bem, né? Só que quando a criança diz quem ela própria é e como ela se sente feliz e confortável – pronto, aí “não tem idade para saber”, só porque difere da expectativa.
Na realidade o problema nunca foi a criança. O problema é a normatividade cisgênero, a cisnormatividade. O problema são adultos desesperados que escondem seu pavor atrás de discursos de suposta “proteção”. Afinal, o que querem proteger? O mundinho pequeno que vivem, onde só cabe o que é previsível, domesticado, cis.
Enquanto vocês estão discutindo o que a criança pode ou não pode ser, elas estão apanhando, tendo vontade de se matar, engolindo choro sozinhas no quarto, aprendendo a se odiar. Tudo isso porque ninguém teve a mínima decência de simplesmente amá-las de verdade. Querem apagar essas vivências para que não tenham que contemplar a própria covardia. Adivinhem só: não conseguirão.
Ao longo da história sempre houve quem tentasse coibir as pessoas de serem quem são. Podem espernear o quanto quiserem, nunca nos impedirão de existir. As crianças que hoje vocês tentam apagar serão adultes que certamente ocuparão cada vez mais espaços e terão cada vez mais voz. Existirão e não pedirão licença para isso. É inevitável.
Então, quando você ouvir uma criança dizendo quem ela é, não desconfie, apenas acolha. Não tente corrigir, abrace. Você não imagina a diferença que isso faz.

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.