Debate soma à mobilização nacional que exige revogação da diretriz. Entidades alertam para danos significativos à saúde desta camada da população que já vive em condições de vulnerabilidade
Nesta quinta-feira (24), a Frente Trans de Londrina em parceria com o programa Práxis Itinerante, vinculado a UEL (Universidade Estadual de Londrina) realiza a live “Em defesa da juventude trans e travesti”.
O evento se soma à mobilização nacional que pede a imediata revogação de nova diretriz do CFM (Conselho Federal de Medicina), responsável por restringir o acesso de pessoas trans, principalmente, adolescentes a tratamentos de afirmação de gênero.
A Resolução nº 2.427, publicada no último dia 16 de abril, proíbe o bloqueio hormonal para mudança de gênero em crianças e adolescentes e aumenta de 18 para 21 anos a idade mínima para realização de cirurgias de transição com efeito esterilizador (confira documento na íntegra aqui).
“Nossa live surge como uma resposta urgente à essa Resolução, que impôs restrições severas ao acesso de pessoas trans a cuidados médicos essenciais, especialmente adolescentes. Trata-se de um retrocesso significativo no direito à autonomia corporal da população trans. Então, estamos propondo essa programação como forma de denúncia, mobilizando o movimento local em consonância com as movimentações nacionais”, explica Ursula Brevilheri, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UEL.
Além de Ursula, o encontro conta com a participação da endocrinologista Julia Moraes e de Oliver Leticia, artista independente. O debate será transmitido pelo canal do Práxis Itinerante no YouTube a partir das 21h.
Para a cientista social, a normativa é “absolutamente descabida e reacionária”. Ursula, que também assina a coluna “Insubmissível” no Portal Verdade, classifica o documento como mais uma manifestação de uma série de ataques que visam restringir o acesso a direitos das populações trans e travesti no Brasil.
Entre as principais preocupações estão o aumento de infecções sexualmente transmissíveis, do abuso de substâncias psicoativas, o adoecimento psicológico, além da escalada de violências.
Levantamento da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), publicado em janeiro último, demonstra que pelo 16º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2024, foram pelo menos 122 assassinatos. A organização chama atenção para a subnotificação dos casos.
A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é, em média, de cerca de 35 anos. O índice é ainda menor entre a população trans negra: 28 anos. As taxas são significativamente menores do que a expectativa de vida geral da população, que é de cerca de 75 anos.
“Essa Resolução desconsidera a importância do acompanhamento multidisciplinar, algo que temos conquistado a duras custas – e o próprio direito à autodeterminação de gênero. No passado, a busca por alternativas clandestinas e não supervisionadas para hormonização e modificações corporais de afirmação de gênero levou grande parte das pessoas trans ao adoecimento e até a morte”, adverte.
Ursula destaca que movimentos similares podem ser observados em outras partes do mundo. Ainda, ela pontua que o documento constitui “um atentado a infância e juventude” na medida em que negligencia a existência de crianças e adolescentes para além das cisgeneridade, ou seja, legitima apenas as vivências de acordo com a “norma”, que são as pessoas que se identificam com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer.
“As restrições dessa Resolução só aumentarão essa busca, indo de encontro às conquistas de nossos movimentos nos últimos anos. Além de fortalecer um discurso completamente mentiroso de que crianças e adolescentes trans não existiriam, o que só produzirá mais violência e apagamento dessas vivências”, pontua.
Mais de 160 entidades ligadas às áreas de saúde e de direitos humanos assinaram uma nota conjunta criticando a diretriz. Para as organizações, a Resolução contraria diversos avanços científicos e desconsidera a instauração de protocolos de tratamento atualmente adotados por serviços de saúde em diversos países, levando ao cerceamento do acesso de pessoas trans a cuidados fundamentais de saúde.
As entidades também entraram com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) visando derrubar a iniciativa.
Patologização é prática histórica e recorrente
Para Ursula, a patologização da população trans e travesti, isto é, a tentativa de enquadrar as corporalidades e sexualidades dissidentes como doenças, recorrendo a explicações biológicas ou médicas constitui uma “prática histórica”.
“O padrão social há séculos é o controle e a normatização para nossos corpos. Nunca tivemos o direito de ser plenamente quem somos. Mas nossos movimentos sociais têm lutado a décadas para mudar essa realidade. Nossos corpos não estão doentes, apenas somos diferentes e queremos viver como quem somos”, assinala.
A nova norma também obriga o acompanhamento médico de um ano para que a hormonização possa ser iniciada.
“Só que essa Resolução vai na direção contrária dos nossos direitos, tratando nossas identidades e vidas como algo a ser regulado e restringido, em vez de reconhecido e respeitado. A verdade é que nossos avanços, estarmos sendo tratades com dignidade, incomoda setores da sociedade que acreditam que devíamos permanecer na vulnerabilidade, que não aceitam que tenhamos tantos direitos quanto a população cisgênero. É uma tentativa de manter privilégios, as custas de nossos corpos. Pior: de corpos de adolescentes, crianças”, complementa.


Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.