Inicio hoje celebrando a todas as pessoas que têm ou não têm fé. Saúdo quem encontra sentido nas rezas antigas, no toque dos tambores, em águas sagradas ou nas páginas de um livro santo. E também quem se recolhe no silêncio de si, de templos ou florestas. Quem acende vela, incenso e/ou pensamento. E quem canta para o céu, para a terra ou para o mistério.
Saúdo também, com o mesmo respeito, quem opta pelo contrário. Quem escolhe o caminho da dúvida, da liberdade de não crer. Quem busca sentido na matéria, na ciência, no afeto humano, em uma ética que não depende de uma relação vertical. Olhares que muitas vezes dispensam mitos, mas não necessariamente dispensam o cuidado.
Por esse respeito a pluralidade e multiplicidade de pessoas e experiências, também saúdo e reivindico a laicidade. “Laico” é aquele espaço ou instituição que não se alinha a qualquer perspectiva religiosa. Não apoia nem se opõe a nenhuma religião. Por exemplo, o Estado Brasileiro é – ou pelo menos deveria ser, segundo nossa Constituição Federal (Art. 5°, VI) – um estado laico.
Mas será que isso é uma realidade na prática? As pessoas têm tido MESMO direito de acreditarem ou não acreditarem no que quiser?
Digamos que um professor de um renomado curso de direito, de uma universidade pública, escolha como tema para sua palestra, nas aulas magnas do curso uma discussão sobre as injustiças sofridas por Jesus Cristo, a partir de uma discussão “jurídica”.
Cristo não é figura universal, mas crença de um grupo de religiões específicas, que inclusive, muitas vezes não o veem ou tratam da mesma maneira. Isso não seria uma ruptura extrema com a lógica da laicidade?
Tudo bem, vivemos em um país de maioria cristã. Mas não podemos transformar isto numa ditadura da maioria sobre as minorias. Quem não é cristão deve possuir o direito de frequentar uma aula pública que atenda sua liberdade de consciência e crença tanto quanto quem é cristão.
Algumas pessoas argumentariam: “mas existe a liberdade de não comparecer à aula”, entretanto, quando o único espaço de fala que existe é destinado a uma religião específica, não é possível notar algum privilégio, um desequilíbrio da relação que deveria ser equânime?
A Universidade é pública. Ela não pode se posicionar ao lado de uma entre as religiões. Contudo, constantemente pessoas de diferentes crenças têm seus direitos atacados, em múltiplos espaços da vida pública, pela primazia de religiões específicas em detrimento de outras.
Se uma servidora, como representante do Estado, faz uma oração com você em uma UPA, CRAS ou qualquer outra repartição pública, para onde vai este direito? Se em diversos atos as autoridades públicas constantemente fazem menção a “em nome de Deus”, o que houve com a laicidade? Se eu não tenho direito de participar de uma aula pública que vá de acordo com o que creio, por que pessoas de outra fé teriam?
Em outras palavras, especialmente para quem segue o cristianismo: a partir do momento que permitam que haja uma aula pública sobre “as injustiças sofridas por Cristo”, abrem margem para que também seja ministrada uma outra aula sobre “as injustiças no julgamento de Lúcifer e seus anjos”, a título de reflexão.
Isso poderia ser dito a partir qualquer outra religião, o exemplo é somente para que vocês percebam como isso pode gerar incômodos. Na mesma linha, se a nossa legislação é promulgada “em nome de Deus”, há margem para que um dia alguém queira promulgar outra “em nome de Satanás”. E não terão sequer o direito de reclamar, porque foram quem começou com o desrespeito à laicidade.
Pertencer a determinada religião não te torna uma pessoa melhor. Diga-se de passagem, a história do mundo relembra coisas terríveis e horrendas que foram feitas em nome da fé. Lembrem-se que o próprio nazismo adorava a expressão “Gott mit uns” – “Deus conosco”. Desconfie de quem usa esse tipo de estratégia para se legitimar e promover. Isso geralmente esconde alguma incompetência ou incapacidade técnica.
Que você possa crer e expressar a fé que quiser, que ninguém lhe proíba isso. Mas não nos obrigue a seguir as normas e mandamentos da sua crença. Não imponha seus valores sobre ninguém. Nem queira utilizar das instituições públicas para fazer isso. A sua religião não é e não será a regra. Respeite o meu direito de acreditar no que eu quiser.

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.