Para a liderança, fragmentação da esquerda é reflexo de uma crise mais ampla, que atinge o sistema de produção, a organização do estado e os modos de vida
No último fim de semana, o economista e um dos fundadores do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), João Pedro Stédile, esteve em Londrina.
Na sexta-feira (27), a liderança participou de uma aula pública sobre a conjuntura política do Brasil e do mundo. A atividade, organizada pelo MST em parceria com o CDH (Centro de Direitos Humanos) de Londrina, lotou o anfiteatro da APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Paraná).
Já no sábado (28), Stédile ministrou o terceiro módulo do CRB (Curso Realidade Brasileira). A atividade teve início em abril e reúne cerca de 50 participantes em encontros mensais sobre os principais pensadores brasileiros.
A primeira aula abordou a “Formação do Povo Brasileiro”, com debate sobre Darcy Ribeiro, Lélia González, entre outros, e o segundo módulo trouxe discussões sobre “Elementos da Economia Política”, a partir da teoria marxista. Já Stédile debateu “A Questão Agrária no Brasil”, ou seja, a organização da vida e da produção no campo em diferentes períodos históricos.
Durante sua passagem pela cidade, Stédile concedeu entrevista exclusiva ao Portal Verdade e Práxis Itinerante, programa de extensão da UEL (Universidade Estadual de Londrina).
Entre os assuntos, o educador analisou as dificuldades para a organização das forças progressistas no Brasil, a superação do agronegócio, modelo que segundo ele já está em crise. Também apresentou os pilares para a realização de uma reforma agrária popular e, ainda, apontou caminhos para ultrapassar a colonização do imaginário, imposto pelo sistema capitalista, a fim de que as pessoas possam sonhar mundos outros.
“Nós fomos invadidos pelo capitalismo mercantil europeu, que massacrou as civilizações anteriores que viviam nesse território. As populações nativas viviam no comunismo primitivo, como ainda existem algumas tribos que estão no comunismo primitivo e, de repente, chega o capitalismo mercantil querendo transformar tudo em mercadoria no nosso território”, explica.
Estima-se que antes da invasão europeia, a população indígena chegava a 5 milhões, pertencentes a diferentes etnias e culturas. Atualmente, no Brasil, a população indígena total é de aproximadamente 1,6 milhões de pessoas, conforme dados do Censo de 2022. Isto quer dizer que, mais de 3 milhões de indígenas foram dizimados.
“O Brasil já é uma construção do capitalismo mercantil europeu. Espero que no futuro nós tenhamos uma revolução social popular, que recupere, inclusive, o nome de Pindorama. Tomara que nós sejamos uma República Popular do Pindorama”, pontua.
Além do genocídio contra os povos originários, a discussão abarcou o período pré-colombiano, ou seja, antes da chegada de Cristóvão Colombo às Américas, seguido do período colonial, marcado pelo plantation, isto é, sistema agrícola baseado na monocultura em larga escala e no trabalho escravizado, características que visavam aumentar o capital europeu.

A partir desta incursão pela história, Stédile salienta que, em comparação a outras sociedades, no Brasil, a propriedade privada da terra é recente, não completando nem dois séculos.
A Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, também conhecida como “Lei de Terras”, foi a primeira legislação brasileira a tratar da propriedade privada da terra. A Lei visava regularizar a posse e a aquisição de terras devolutas, ou seja, as áreas públicas que não foram destinadas a nenhum uso específico pelo Império e que não pertenciam a particulares. Entre as mudanças, a legislação estabeleceu que a terra só poderia ser adquirida mediante compra.
“Isso gerou uma crise. A escravidão era insustentável, então, Dom Pedro II introduziu como elemento de transição, a primeira Lei que estabelece a propriedade privada da terra. Note, a propriedade privada da terra é muito recente, não tem nem 200 anos”, observa.
“A nossa sociedade nunca foi marcada pela propriedade privada da terra. Foi o capitalismo que nos impôs essa condição. E nós tivemos um período de transição entre 1850 e 1930, com o fim da escravidão, e surge, então, uma nova classe social, que foi o campesinato”, ele complementa.

Foto: Clara Borbalan/Práxis Itinerante
O campesinato corresponde a uma forma de produção, cujos fundamentos se encontram no caráter familiar, tanto dos objetivos da atividade produtiva, voltados para as necessidades da família – quanto do modo de organização do trabalho, que supõe a cooperação.
“Formado por várias fontes, aquela população mestiça, foi se formando ao longo da Colônia. Não eram escravos, não podiam ser comprados e vendidos, era a mestiçagem entre brancos europeus e negros, entre negros e índigenas, entre índigenas e europeus, formando o povo brasileiro. Eles foram sertão adentro para sobreviver, utilizando o modo de vida camponês, com trabalho familiar, produzindo alimentos e se reproduzindo”, recorda.
“A outra fonte do campesinato foram os camponeses pobres que vieram da Europa e a terceira fonte foi os escravos que fugiam e formavam os quilombos, que eram comunidades libertas e reproduziam o modo de vida camponês”, acrescenta.
Ainda, Stédile relembra que a Revolução de 1930 marcou o fim da República Velha. O movimento, liderado por Getúlio Vargas, derrubou o governo oligárquico, instigando a industrialização do país e favorecendo, portanto, o surgimento e a ascensão de uma burguesia industrial.
“Reorganizaram a agricultura, não mais para exportação, mas para os interesses da acumulação na indústria. Então, não se ganhava dinheiro exportando para a Europa, se ganhava dinheiro na indústria. A agricultura tinha que suprir necessidades da indústria, seja de mão de obra, de alimentos baratos, de matéria-prima de energia”, avalia.
O agro mata
De acordo com Stédile, a partir de 1990, com a expansão do neoliberalismo, marcado pelo domínio do capital financeiro e expansão de empresas multinacionais, instaurou-se uma nova fase para a agricultura brasileira, que perdura até hoje: o agronegócio.
Porém, em sua avaliação, o agronegócio também já tem “exposto as suas vísceras”, demonstrando que é inviável.
“É um modelo que usa agrotóxico e o agrotóxico mata. Mata a biodiversidade, contamina as águas, os alimentos, gera câncer pelo glifosato. Então, é um modelo que não tem futuro social”, indica.
O glifosato é o principal ingrediente ativo de agrotóxicos, largamente utilizado no mundo e o mais vendido no território brasileiro.
“Agridem ao meio ambiente pelo desmatamento, o uso de agrotóxico, o monocultivo na pecuária, de gado bovino, 50% de toda emissão de gás carbônico, que altera o clima no Brasil e no mundo é gerado pela pecuária. No Brasil, já tem mais bois do que pessoas. Tem 230 milhões de cabeças de gado, nós somos 210 milhões”, adverte.
O rebanho bovino brasileiro tem crescido e alcançado novos recordes nos últimos anos. Em 2022, atingiu 234,4 milhões de animais, com um aumento de 4,3% em relação ao ano anterior, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Em 2023, foram contabilizadas 238,6 milhões de cabeças de gado no país, o maior número da série histórica iniciada em 1974.
Para o pesquisador, outros reflexos do agronegócio são a precarização do trabalho e a elevação do desemprego, isto porque, o modelo tem investido cada vez mais na substituição da mão de obra por máquinas.
“É um modelo que exclui a mão de obra. Na última feira de Ribeirão Preto, a grande novidade que o agronegócio apresentou para a sociedade brasileira, foi um trator sem tratorista. Caminhão para carregar cana sem motorista. Então, para que eles querem mesmo as pessoas?”, indaga.
Stédile refere-se à Agrishow, considerada a maior feira de tecnologia agrícola do Brasil. Reunindo produtores rurais de todo país, o evento tem a intenção de apresentar as últimas tendências e inovações para o setor. A edição de 2025 reuniu mais de 800 marcas expositoras e cerca de 200 mil visitantes.

“Não se assuste com a crise, ela também anuncia mudanças”
Para Stédile, as próprias contradições do agronegócio levarão à superação do modo de produção. Segundo ele, um dos primeiros passos é a população se conscientizar dos malefícios do modelo, o que é um grande desafio já que ele não está presente apenas nas gôndolas dos supermercados, mas também influencia diversos outros setores, a exemplo dos meios de comunicação e da política institucional.
“A sociedade tem que entender que o agronegócio não serve. Ainda que, nesse momento, o agronegócio seja hegemônico porque ele domina o [poder] Judiciário, então, ninguém é criminalizado. Domina o [poder] Legislativo, então, o dinheiro público continua sendo drenado por ele, e domina a mídia. Todas as noites, a Globo diz que o agronegócio é pop, é moderno”, diz.
De acordo com o professor, que é autor de diversos livros sobre a questão agrária, apesar de cada tempo histórico ter a sua hegemonia, isto é, a liderança de um grupo sob outro, o que não acontece apenas através da força (coerção), mas também por meio do consentimento, uma vez que as forças dominantes estabelecem também as ideias dominantes, é possível que haja mudanças.
“O agronegócio também pode durar mais cinco, mais dez anos, mas vai acabar. Ele não tem perspectiva de futuro”, afirma.
Reforma agrária popular
Para o educador, um caminho possível é a reforma agrária popular, defendida pelo MST. O modelo, que também pode ser denominado de “agricultura regenerativa”, tem como premissa o respeito à natureza, o que inclui o reflorestamento.
“Nós vamos ter a obrigação de reflorestar o nosso território. Nós temos 50 milhões de hectares degradados. Onde o solo está empobrecido, perdeu vida, está cheio de veneno. E nós temos que reflorestar as cidades”, avalia.
Outro fundamento da reforma agrária popular é a produção de alimentos saudáveis. “A prioridade deve ser alimentos. É para isso que existe o ato de cultivar. É para você produzir a nossa energia. Não é para produzir lucro. Não é para produzir mercadoria”, sustenta.
Para a produção de alimentos saudáveis, Stédile defende a agroecologia, que refere-se a uma forma de agricultura sustentável, que respeita a biodiversidade e promove o desenvolvimento com justiça social.
“A agroecologia é um conjunto de técnicas, que fazem com que você produza mais e melhor sem veneno, sem agroquímicos. Só em diálogo com a natureza, você pode aumentar a produtividade do trabalho e da terra”, assinala.
Ainda, ele aponta a necessidade de fortalecer as agroindústrias e cooperativas. Para ele, tais iniciativas oportunizam a produção e comercialização de alimentos, resguardando a autonomia e melhores condições de vida para os agricultores. Ainda, contribuem para a soberania nacional, uma vez que, combatem o colonialismo alimentar.

A colonialidade alimentar está assentada no acúmulo de capital, controle dos meios de produção, exploração da natureza, padronização dos gostos e a classificação hierárquica dos sistemas alimentares.
Neste projeto, prevalecem os grandes latifúndios, o uso de agrotóxicos, a concentração de terras, a transformação da comida em mercadoria, o fortalecimento das indústrias de produtos alimentícios ultraprocessados, as crises ambientais e o adoecimento em massa.
“Nós não queremos mais grandes multinacionais como é a Nestlé, a Cargill, são as multinacionais que dominam a nossa agricultura. Todos os grãos são controlados por cinco empresas. Nenhuma é brasileira. Nós temos que desenvolver uma agroindústria que beneficie os alimentos para poder chegar de forma saudável na cidade. Mas na forma cooperativa, onde os próprios trabalhadores são os proprietários da agroindústria e não o capital internacional”, destaca.
Stédile também enfatiza a necessidade de que o estado garanta boas condições de vida no campo, garantindo que o êxodo rural seja uma escolha e não uma imposição.
“Você pode morar bem, ter uma casa boa, uma agrovila, desde que no campo tenha escola de qualidade, posto do SUS [Sistema Único de Saúde], internet de qualidade. Essas mudanças na agricultura demandam que o estado brasileiro reorganize a vida no campo, para que as pessoas possam viver bem no campo”, argumenta.

Foto: Franciele Rodrigues/Portal Verdade
Crise da sociedade capitalista e reorganização das forças progressistas
Stédile considera que a crise do sistema capitalista não afeta apenas o modo de produção, mas também se manifesta na cooptação do estado por interesses privados, impossibilitando que os poderes públicos, em suas três esferas, ofereçam políticas públicas que visem suprir as necessidades da população.
“Nós estamos vivendo uma crise que o companheiro Leonardo Boff chamou de ‘crise civilizatória ocidental’. E esse conjunto de crises afeta a saúde pública, o comportamento das pessoas, porque, no fundo, os capitalistas, como dizia Margaret Thatcher, não querem construir a sociedade. O capitalismo precisa só dos indivíduos, não da sociedade. No fundo, os capitalistas são contra a sociedade, só querem que o indivíduo seja egoísta, individualista e consumista e isso leva a essa situação que nós estamos vivendo em todo o mundo ocidental”, argumenta.
Além de ser referência na discussão sobre o direito à terra, Stédile também é um dos principais nomes da esquerda mundial. Questionado sobre a desorganização das forças progressistas no contexto brasileiro, ele avalia que a fragmentação e fragilidade, são decorrentes desta crise mais ampla.
“A crise generalizada que estamos vivendo afeta também a esquerda. Porque na crise, cada um procura a sua saída. É como se nós estivéssemos todos num salão e alguém gritasse ‘fogo, está pegando fogo’. Cada um procura uma saída, uma janela, uma porta. É assim que acontece nos incêndios. Podemos usar essa metáfora. Então, a esquerda também, ela está atomizada, fragilizada, desorganizada porque ela perdeu o rumo de um projeto de sociedade”, pondera.
Apesar da leitura crítica sobre a realidade, ele mantém o otimismo e vislumbra que o cenário irá mudar, motivado pelas manifestações populares.
O reascenso de massas virá, ninguém sabe quando, mas vai produzir novos líderes, um novo programa, uma nova reorganização da esquerda, em torno, então, de um novo projeto de país. O que unifica a esquerda não é fazer reunião de 300 grupos, o que unifica são as forças que querem as mudanças”, conclui.

Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.