Por que a Linguagem Neutra incomoda tanto? E se eu te dissesse que a culpa é, em grande parte, de políticos que ficam perseguindo essa pauta para ganhar votos – o que por sinal tem sido muito efetivo?
Em meu mestrado em Sociologia me debrucei sobre os discursos contra a linguagem neutra na política brasileira, e percebi uma coisa que precisa ser dita: eles não passam de um projeto eleitoral e de poder. Assim como a proibição de pessoas trans no esporte, do uso dos banheiros, daquele papo mentiroso de “ideologia de gênero”, entre outros. Mas hoje falaremos da Linguagem Neutra.
Estão tentando te colocar em pânico! Porque quando você passa a acreditar que existe uma “ameaça”, eles se colocam como salvadores e as pessoas acabam votando neles. É uma estratégia baseada em mentiras, mas que cola muito bem, especialmente quando repetida pelo Brasil inteiro, em câmaras de vereadores e assembleias legislativas estaduais e federal.
Trata-se de um projeto político. Estão tentando estabelecer uma lógica de “guerra santa” na cabeça da população, pois assim eles garantem a permanência no poder, mesmo sem pautas que realmente vão de encontro aos interesses e necessidades do povo. É muito fácil apoiar um político que se coloca “contra os inimigos de Deus” ou que diz querer “proteger as crianças”.
Só que essas “ameaças” não passam de mentiras deslavadas, repetidas até que você acredite. Vamos observar alguns dos argumentos geralmente usados:
“A Linguagem Neutra é contra a Língua Portuguesa.” – Completamente errado. Há centenas de estudos na sociolinguística e áreas correlatas mostrando como essa forma de se expressar é mais uma entre as tantas variações dentro da língua. Isso não tem nada a ver com “forçar uma mudança”, ao contrário, é completamente natural. São formas de se expressar e as pessoas adotam para incluir e não para excluir. Essa é uma das belezas da Língua Portuguesa, na verdade: sua dinâmica, estar sempre em movimento.
“A Linguagem Neutra atrapalha Pessoas com Deficiência (PCDs).” – Nada a ver. Essa é bem curiosa, porque em geral vem de pessoas que nunca tiveram nenhuma preocupação com a população PCD. E também porque faz parecer que entre as pessoas que adotam essas formas de linguagem só há pessoas sem deficiência. Eu mesma conheço pessoas cegas que fazem uso de aplicativos leitores para celular ou computador, e que se adaptaram sem dificuldade a um “todes”. Na própria Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) não existe flexão de gênero, sequer há a necessidade de Linguagem Neutra, ela é por si só desbinarizada. Isso só para ter alguns exemplos. Há milhares de Pessoas com Deficiência que são não binárias, travestis, transmasculinas, basta olhar em volta.
“Querem nos obrigar a usar a Linguagem Neutra.” – Não, obviamente não. É lógico que queremos respeito, e se você é incapaz de respeitar uma forma como alguém quer ser chamade, não conviva com pessoas diferentes de você. Mas ninguém está querendo obrigar todo mundo a usar, nem obrigar que seja ensinado ou algo assim. Percebam como essa ideia é bem irracional e ligada a aquela tentativa de te deixar em pânico. Quando usamos “boa noite a todes” em espaços públicos, nosso objetivo é incluir pessoas historicamente marginalizadas, não atentar contra algum tipo de “liberdade” sua. Afinal, o que mais pessoas estarem sendo contempladas atrapalha na sua vida?
“É um braço do movimento feminista internacional/movimento comunista para destruir os nossos valores.” – Sério que alguém é capaz de acreditar numa coisa dessas? É completamente conspiratório, uma teoria da conspiração pura. Análogo a acreditar que a terra é plana. Diga-se de passagem, mesmo dentro de movimentos de esquerda há pessoas que reproduzem esses pânicos contra a linguagem neutra, então quem dirá ser algo que tenha apoio o suficiente para se tornar uma frente de poder nesse sentido. Nem existe esse tal “movimento feminista/comunista internacional” ou qualquer uma dessas balelas. Nós não estamos em uma guerra cultural. Quem diz isso está tentando te assustar e muito provavelmente te fazer votar nele. Não entre em pânico.
Essa ideia de que queremos “destruir os valores da família” ou algo assim é completamente absurda. Nós, pessoas trans, também compomos famílias, seja na posição de ascendentes ou descendentes. Faz muito mais sentido você dizer que um pai que expulsa sua filha de casa, ao se assumir não binária, estar destruindo esses valores. Nesse sentido, a Linguagem Neutra é mais a favor da família do que contrária a ela, na medida em que facilita a aproximação e a comunicação, mostra importância pela existência da outra pessoa.
Nós não somos inimigos. Mas comece a observar como somos pintades dessa forma nos discursos de políticos que querem te deixar em pânico para conseguir seu voto e/ou apoio. Chega a ser absurdo que em uma cidade com altos índices de violência contra pessoas trans como Londrina parlamentares estejam preocupados em proibir e multar nossa fala, nossa voz.
A nossa população está sendo literalmente exterminada e a preocupação da política municipal com nossas vidas é se o nosso jeito inclusivo de falar vai “destruir a língua portuguesa”? Poupe-nos. Melhor seria se só nos esquecêssemos, como fazem todo dia, do que pegar nossas existências e demonizá-las. Enquanto caçam até mesmo nossa forma de falar, de nos expressarmos, continuamos sendo assassinades.
Isso sem considerar a noção que forçam na cabeça das pessoas de que somos “inimigos” da família, da sociedade, da religião, dos costumes. Para que não haja dúvidas: NÃO SOMOS. Tem até travesti que é pastora em igreja. Transmasculino que é pai. Nós só queremos existir e estão se aproveitando disso para interesses próprios, o que acaba produzindo ainda mais violência contra as nossas vidas.
No fim das contas, o único atentado nessa história de “proibir a linguagem neutra” é o atentado à inteligência da população.

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.