Com o fim da Segunda Guerra, o mundo se viu numa nova expansão capitalista dominada pelos EUA, que saíram como o grande vencedor do conflito. Este cenário aumentou de forma expressiva a acumulação capitalista, que foi, de alguma forma, revertida para o desenvolvimento da qualidade de vida do cidadão estadunidense. Isso pode ser constatado principalmente nas décadas de 1950 e 1960, um período chamado “Anos Dourados”.
As crises do sistema, a partir de 1970, fez com que os EUA deixassem cada vez mais o New Deal de lado, que garantia o Estado de Bem-Estar Social,e passasse aos poucos a adotar o neoliberalismo, que visava ao restabelecimento das taxas de lucro a qualquer preço, sobretudo, degradando progressivamente a qualidade de vida da população em geral. Tal processo, associado ao desenvolvimento do meio técnico-científico-informacional, termo de Milton Santos, propiciou, com o desenvolvimento do transporte e da comunicação, um outro processo, a globalização, sobretudo, a partir de 1980 e 1990. O neoliberalismo se tornou o braço político da globalização.
A globalização representou uma nova fase de atuação do capital no espaço geográfico mundial. Com ela, o capital, por meio das grandes corporações, encontrou as bases necessárias para se desprender do Estado-Nação e atuar nas zonas mais rentáveis do planeta, isto é, aquelas que ofereciam mão de obra mais barata, leis generosas e isenção de impostos. A meca disso tudo? A China!
A partir daí vimos um verdadeiro deslocamento das indústrias do centro do sistema capitalista para as periferias que ofereciam essas vantagens. Como se não bastasse, o capitalismo financeiro se encarregou de agravar ainda mais tal cenário, no qual grande parte das riquezas das nações é drenada, por meio de mecanismos como as dívidas públicas, para o sistema financeiro mundial, que se tornou cada vez mais parasitário. O resultado disso tudo é um aumento do desemprego e queda da qualidade de vida em todas as partes do mundo, incluindo agora, de uma forma mais intensa, o ocidente e seu centro, os EUA. A crise de 2008 e o desenvolvimento das grandes empresas de tecnologia e inovação, as Big Techs, agravaram ainda mais o problema, aumentando o desemprego e o trabalho precarizado, a uberização. Já se discute o termo Tecnofeudalismo, uma sociedade tecnológica que joga a maior parte da população para a servidão ou para fora do sistema, isto é, para a barbárie que passa a existir em cada cidade do mundo.
Os EUA, que eram vitrine do mundo capitalista, se tornaram uma nação que vive de aparência; na essência, é um país com dezenas de milhões de cidadãos lançados à própria sorte pela desindustrialização e pelo capitalismo financeiro parasitário (Ver nessa coluna, Capitalismo financeiro parasitário X Capitalismo Produtivo, Portal Verdade, 02.08.2022). Não há empregos, não há habitações suficientes, a inflação dos aluguéis coloca milhares nas ruas a cada ano, não há serviços universais de saúde pública, não há perdão para os milhões de universitários que estão endividados e pelo menos 17 milhões de crianças vão para a cama com fome todas as noites. O neoliberalismo gerou um capitalismo parasitário que não oferece mais futuro para o cidadão estadunidense.
A consequência deste cenário gerou o crescimento da extrema direita, da xenofobia explícita contra os imigrantes e a volta do fascismo no mundo, algo muito parecido com a onda fascista e nazista que tomou conta da Europa após a crise de 1929. Hoje, no mundo, se percebe como muitas das “democracias ocidentais” estão sendo dirigidas pela extrema direita, eleita quase sempre pelo descontentamento de cidadãos perante o perverso sistema capitalista que se estruturou. Depois de eleitos, essa mesma extrema direita tenta abolir a própria democracia que a elegeu através de tentativas de golpes. Isso já se mostrou muito evidente no EUA e no Brasil.
Trump é eleito via um discurso que prometia trazer a indústria e, consequentemente, os empregos de volta e tornar a “América grande novamente” por meio de um ataque aos imigrantes e de um protecionismo exacerbado, taxando os produtos importados de vários países.
No último dia 2, o governo Trump anunciou as novas tarifas para os produtos de todos os países do mundo, alguns países com 10% como o Brasil, outros com 20%, como a União Europeia, e a China com 34%. Já havia anunciado, em março, tarifas de em torno de 25% para o Canadá, México e China. Foi além, numa atitude desrespeitosa, ameaçou tornar o Mexico e o Canadá estados americanos, criou um grande problema diplomático ao ameaçar a soberania da Groenlândia, que pertence a Dinamarca, e também ameaçou se apossar do Canal do Panamá. Trump, em menos de três meses, com seu tarifaço, abalou o sistema comercial globalizado, que se mantinha desde as últimas décadas do século passado. Estamos vendo o fim da globalização? Possivelmente não.
O mundo reage. O México conseguiu fazer o governo Trump voltar atrás em algumas tarifas. O Canadá aumentou as tarifas com relação aos produtos importados dos EUA e taxaram também a energia elétrica que vendem para este país; grande parte do nordeste americano, região mais industrializada, depende dessa energia importada do Canadá. O primeiro-ministro canadense Mark Carney disse em bom tom que a confiança das relações comerciais com os Estados Unidos havia chegado ao fim e já se iniciaram contatos bilaterais para ampliar seus mercados com outros países. A União Europeia ameaça fazer o mesmo.
A China implementou, nos últimos dias, os mesmos 34% de tarifas para os produtos estadunidense. O resultado dessas reações agrava ainda mais a economia nos EUA. Parte dos produtos industrializados dos EUA depende de peças e insumos que vêm de fora e, com a taxação, ficam mais caros. Uma inflação de cerca de 10% já é percebida nesses três meses de governo. Empresas pararam de vender pois seus produtos ficaram mais caros. Algumas já estão demitindo. O governo Trump levou o país, em curto espaço de tempo, para uma imprevisibilidade alarmante, que é o que fez com que as bolsas de valores derretessem nos últimos dias, causando prejuízos na ordem de cinco trilhões para as empresas, incluindo as grandes corporações. No último fim de semana, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades dos EUA protestar contra o governo. Sua popularidade despenca a cada dia.
É bom lembrar que John Kennedy ganhou duas balas na cabeça por muito menos. Na campanha eleitoral, um atentado amador contra a vida do candidato Trump rasgou sua orelha. O descontentamento hoje é muito maior.
Trump não está acabando com a globalização, mas está mexendo com as cartas do sistema comercial globalizado, que já se readapta para os novos tempos. Conseguiu fazer China, Japão e Coréia negociarem medidas conjuntas contra o tarifaço. Afastou a Europa, que promete retaliações. Está perdendo os acordos com o Canadá e México. Trump isola o EUA com sua política de taxações. A instabilidade criada por sua guerra comercial ameaça cadeias globais de suprimento e investimentos, trazendo inflação e desemprego.
A globalização e o neoliberalismo trouxeram um poder sem precedente para as corporações mundiais e uma perda de poder para o Estados-Nação. Essas corporações, que mandam no mundo, não vão permitir esses ataques por muito tempo. Ou Trump volta atrás em muitas medidas ou seu governo não resistirá. De qualquer forma suas ações aceleram o fim da hegemonia dos Estados Unidos e abre as portas para a multipolaridade já anunciada pela ascensão da China e Rússia e, agora, também de uma parte do mundo que se afasta dos EUA. O grupo que quer se livrar do dólar deve aumentar.

Fábio da Cunha
Professor Dr. Fábio César Alves da Cunha é geógrafo e docente associado do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Londrina UEL. Possui mestrado em Planejamento Ambiental (UNESP), Doutorado em Desenvolvimento Regional (UNESP) e Pós-Doutorado em Metropolização pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Trabalha com geografia urbana e regional, planejamento urbano e ambiental, geopolítica e metropolização.