É impressionante o quanto esse negócio de gênero parece importar. Independente da situação, sempre alguém vem com essa. No jeito de andar, no jeito que se projeta a voz, no banheiro que escolhe ir, na roupa que veste ou como se apresenta.
Isso é OBSESSÃO. Parece que o gênero precisar ser reafirmado toda hora, o tempo todo. É como se não bastasse só estar ali. Precisa sempre ficar se prendendo a uma ideia?
E tem gente que acha que isso é natural. Que faz parte do mundo. Que é só “homem sendo homem” ou “mulher sendo mulher”. Mas basta fugir um pouco do script para perceber o tamanho da vigilância.
Outras pessoas trans que têm barba podem confirmar: basta deixar sem fazer por um ou dois dias para começarem a errar seu pronome.
Basta sair sem brinco, sem maquiagem, que já era, perco o direito de ser tratada como Ursula, como “ela”, as pessoas passam a achar que podem me desrespeitar. Entro no banheiro e sou atravessada por olhares, quando não comentários. Falo no microfone e vejo as pessoas tentando entender qual meu sexo/gênero antes de escutar o que eu tenho a dizer.
Tem algo muito profundo nessa necessidade coletiva de saber “o que você é”. Não algo apenas profundo, mas violento, nessa obsessão por classificar, rotular, de tentar enquadrar.
E pior: apesar de toda essa vigilância constante, querem alegar que a obsessão é nossa. Que somos nós, pessoas trans, que vemos gênero em tudo. Que a gente “não supera”, que é tudo militância, identitarismo, “mimimi”, que a gente força demais.
Calma aí que na prática é bem diferente.
Quem é que define cores, brinquedos, roupas e expectativas baseadas em um ultrassom? Quem é que acha que um corte de cabelo de uma criança pode “confundir os outros”? Quem se sente enganado quando descobre que a pessoa que achou bonita é trans? Quem não pode ouvir um “todes” ou “bem vindes” que já fecha a cara? Quem fica “confusa” por ouvir uma pessoa de voz grave ser chamada por um nome feminino? Quem acha que pode “respeitar, mas não concordar” com existências que nunca pediram sua opinião?
É obsessão por gênero por toda parte e ela não está nos corpos trans. Ela é parte de um sistema que estabelece o gênero como critério de verdade. Como se o mundo só pudesse funcionar se todes soubessem, de antemão, o que esperar de uma pessoa.
Talvez você nunca tenho ouvido falar, mas este sistema estrutura a forma como a sociedade entende o que é uma pessoa. É essa lógica que faz com que você olhe para o corpo de alguém e tente, imediatamente, encaixar. São estes acordos sociais subentendidos que decidem quem pode existir sem explicação e quem precisa se justificar o tempo todo para ser tratade com um mínimo de dignidade.
Essa lógica que naturaliza o cis como padrão, que toma como “óbvio” o que é, na verdade, uma construção social, tem nome: cisnormatividade. Ela não se manifesta só na burocracia ou nas ofensas diretas. Ela está no olhar, no estranhamento, na dúvida. Ela está no jeito como uma criança que não performa “o gênero certo” é corrigida, disciplinada.
Toda essa obsessão é problema de vocês. Parem de nos encher o saco.

Ursula Boreal Lopes Brevilheri
Travesti não binária, cientista social, mestra e doutoranda em Sociologia, ativista de direitos humanos.