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População ocupa o Legislativo e rejeita projeto que privatiza espaços públicos em Londrina

Comunidade rechaçou a medida apontando consequências para as camadas mais vulneráveis. PL segue para votação em segundo turno

Na noite desta segunda-feira (21), lideranças de sindicatos, associações culturais e esportivas, estudantes, artistas do movimento hip-hop, entre outros segmentos, ocuparam a Câmara Municipal de Londrina, durante audiência pública, para rechaçar o Projeto de Lei (PL) nº 203/2021. A reunião contou com aproximadamente 300 participantes que lotaram as galerias da Casa. Mais de 40 pessoas se inscreveram para opinar sobre a regulamentação.

A maioria se declarou contrária à aprovação como Natália Lisboa, integrante da Frente Antirracista de Londrina. Ela recorda a importância da quadra de esportes do bairro para a trajetória do filho José Miguel. Hoje, com 18 anos, ele é estudante do IFPR (Instituto Federal do Paraná), ingressante por políticas de ação afirmativa, e integrante da Seleção Paranaense de Futebol, mas a prática do exercício começou ainda na infância com quatro anos.

“Não foi a escolinha de futebol que formou ele apenas, foi a quadra do bairro. Ele treinava no projeto do professor humilde que ia lá muitas vezes com bolas velhas, mas se ele quisesse chegar onde chegou, não conseguiria com o treino duas vezes por semana, ele só conseguiu chegar porque tinha um espaço público para ele jogar com os amigos dele, local que não era privatizado”, conta.

Foto: Laurito Porto de Lira Filho

Direito à cidade negado

Proposto pelo vereador Fernando Madureira (PP), o “Programa Vida Saudável”, estabelece que, a partir de parcerias com a Prefeitura Municipal de Londrina, associações não governamentais podem ficar responsáveis pela manutenção de quadras, campos esportivos, ginásios, praças, entre outros espaços públicos destinados ao esporte, lazer e cultura. 

A medida possibilita, inclusive, a cobrança de taxas para uso destes ambientes. Conforme informado pelo Portal Verdade, a mudança tem provocado grande descontentamento da população que tem alertado para a privatização dos espaços públicos.

Desde o início de julho, quando o assunto voltou à agenda, mais de 20 coletivos da cidade estão se mobilizando para tentar barrar o avanço do PL que é considerado uma forma de negligenciar a garantia de direitos constitucionais como acesso à cultura, educação e lazer, principalmente, para camadas mais economicamente mais vulneráveis (relembre aqui).

Uma das mobilizações foi realizada no domingo (20) pelo Projeto Vista Bela em Movimento. O grupo realizou o fechamento simbólico da praça do bairro, na zona Norte de Londrina. “A nossa cobrança é por melhoria no nosso espaço público, e a construção de uma nova praça pra esportes, conforme foi prometido pelo prefeito Marcelo Belinati. Queremos novos espaços públicos e não ter nosso direito de uso, do pouco que temos, cerceado por um PL”, observa Vanessa Carolina Prates Rocha, estudante de Serviço Social pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e organizadora do coletivo.

Ainda, a liderança ressalta que as políticas públicas não são favores concedidos pelo estado e devem ser asseguradas, visto que a população as financia através do recolhimento de impostos. “Espaços públicos não são gratuitos, é o retorno do nosso imposto voltando para nós justamente em serviços e benefícios públicos, e assim deve permanecer. Para que o cidadão londrinense possa exercer a sua cidadania tendo direito a cidade. Colocar algo que é de todes não mão de uma só organização, é cercear um direito fundamental, o que fere o princípio da liberdade e da dignidade humana”, adverte.

Também na manhã da segunda-feira, representantes de entidades como o Centro de Direitos Humanos e Associação Amigos da Bocha Sul-Americana de Londrina amanheceram com cartazes em frente às sedes dos poderes Executivo e Legislativo locais em protesto ao PL.

Foto: Alisson Poças

“Pedágio”

O parlamentar proponente e apoiadores do PL indicam que não se trata da “privatização” dos espaços públicos, mas os coletivos têm alertado para o contrário. “O vereador Madureira está falando que nós que estamos dizendo em ‘privatização’. A ‘iniciativa privada’ saiu da própria Fundação de Esporte e está na lei. Não fomos nós que estamos assumindo a privatização do espaço público”, salienta Maria Giselda de Lima Fonseca, representante da Comissão de Esportes do Centro de Direitos Humanos e da Associação Amigos da Bocha Sul-Americana de Londrina.

“A possibilidade do cessionário poder fechar os espaços públicos e cobrar pela utilização do espaço é o principal problema. Isso é um instrumento de exclusão social, fere o direito de ir e vir, além de obrigar as pessoas de forma indireta criando um vínculo associativo a alguma entidade através de uma possível cobrança mensalidade ou taxa para o uso dos espaços”, acrescenta Laurito Porto de Lira Filho, secretário de Formação do Sindicato dos Bancários de Londrina e Região e membro do Coletivo de Sindicatos de Londrina.

Para o sindicalista a transferência da gestão dos espaços públicos para iniciativa privada pode ser comparada a pedágios, isto porque, as organizações que assumirem a manutenção dos ambientes poderão cercear o trânsito com base no pagamento de ingressos, mensalidades, entre outras formas de contribuição.

“Ontem, a audiência pública demonstrou os graves problemas em aprovar uma lei que entrega para a iniciativa privada a possibilidade de explorar espaços públicos de esporte, lazer e cultura através de um processo de privatização permitindo inclusive a cobrança de taxas da população pelo uso dos locais”, avalia.

Antônio Geraldo Magalhães Gomes Pires, professor da Universidade Estadual e Londrina, onde coordena o Núcleo de Estudos sobre Educação Física, Esporte e Lazer também compareceu à reunião. Ele considera que o encontro foi muito positivo, pois reuniu uma diversidade de instituições e pessoas, com destaque para a participação de jovens. “Todos os discursos produzidos estavam ancorados no princípio do direito à cidade ser garantido para toda a sociedade”, pontua.    

“Delegar a alguma entidade em específico os cuidados e domínio dos espaços públicos, por si só já é uma modalidade de privatização, que nada mais é que tornar privado o que é do povo. Quem terá direito de uso após a aprovação da nova PL vida saudável? Nós, periféricos, sabemos que não vai ser a gente”, evidencia Rocha.

Criminalizado, movimento hip-hop marca presença

Constante alvo de repressão policial, artistas do movimento hip-hop também compareceram à audiência pública e utilizaram a tribuna para chamar atenção para os abusos dos agentes de segurança pública. Rita de Cássia Lemes, representante do Conselho Municipal de Cultura, lembrou do Projeto de Lei nº 3308/2019, proposto em âmbito federal, que garante que as apresentações culturais realizadas por artistas de rua não devem sofrer nenhum tipo de censura ou cerceamento.

“Quando a gente não preserva os direitos, a gente é opressor. Ontem, durante uma batalha de rima na zona Leste, assim como tem acontecido há décadas, nós sofremos abusos. Tudo que tem sido dito sobre isso de ilicitude, uso de drogas, tem sido confrontado porque o hip-hop está aí para salvar vidas. A cultura não funciona desta forma, você não pode colocar um PL que venha restringir o nosso uso assim como feito na Concha Acústica. Nós temos o direito à liberdade de expressão. Nós pedimos o arquivamento deste PL”, diz.

“Ficou exposto o pior dos problemas que é a exclusão social das pessoas que mais precisam dos espaços públicos que são os jovens das camadas populares e das regiões periféricas, cujas manifestações esportivas e artísticas sofrem com a repressão policial, discriminação e acusações mentirosas de depredação dos espaços públicos que utilizam. Quem já foi a uma batalha de rima ou a uma das atividades do skate sabe que eles organizam e orientam a ‘galera’ a limpar todo o espaço e a não estragar o local que será usado novamente por eles mesmos”, complementa Filho.

Foto: Laurito Porto de Lira Filho

Burocratização

Randher Lima, aluno do curso técnico de Biotecnologia do IFPR e presidente da ULES (União Londrinense dos Estudantes Secundaristas) utilizou a reunião para denunciar o processo de burocratização que dificulta o acesso aos espaços públicos na cidade. Na avaliação do estudante, caso o PL seja aprovado, a tendência é que a utilização destes locais, sobretudo, por parte de segmentos mais empobrecidos se torne cada vez mais difícil.

“Eu como estudante, solicitei no ano passado, o uso da quadra em frente ao estádio do Café, a Praça da Juventude para a Fundação de Esportes da cidade. Por meio de e-mail, tentei ligar na Prefeitura, peguei três números de telefones diferentes. Faz um ano e seis meses e até hoje não tive retorno nenhum. Como vocês propõem algo e diz que irá passar pelo Conselho [Municipal de Esportes], se a Fundação de Esportes não responde um e-mail? Não tem como burocratizar o acesso a lazer, é dever do município, está na Constituição Federal, é obrigação do estado garantir lazer, cultura, educação e segurança para as pessoas”, relata.

Foto: Laurito Porto de Lira Filho

PL segue para votação em segundo turno

Mesmo após os protestos, o vereador Madureira não tirou o PL de pauta. Propostas de alterações no projeto e manifestações podem ser enviadas até as 23h59 desta terça-feira (22) no Protocolo da Câmara ou por meio do site oficial, na aba Cidadania.

Em julho, o PL foi aprovado em primeiro turno pela Câmara Municipal de Londrina sob protesto dos coletivos que ocuparam as galerias da Casa. Dos 19 parlamentares, apenas cinco votaram contra: Lenir de Assis (PT), Lu Oliveira (PL), Mara Boca Aberta (Pros), Professora Flávia Cabral (PTB) e Roberto Fú (PDT). Os demais apoiaram o projeto que vem tramitando desde 2021.

Filho comenta que as articulações continuam junto a outros atores políticos da cidade e entidades ligadas à cultura, esportes, movimento sindical, associação de moradores e demais movimentos.

“Ainda seguimos preocupados com a tramitação, mas os coletivos continuam mobilizando a população e se a Câmara de Vereadores realmente é a Casa do povo eles vão ouvir o povo que é contra a privatização, contra a repressão policial da expressão cultural e artística dos jovens, bem como da retirada dos espaços de práticas esportivas da população londrinense. E não escutem os interesses comerciais de uma minoria de nos últimos anos tem prejudicado o esporte, a cultura e o lazer da cidade com suas ideias segregacionistas, racistas e repressivas”, pontua.

A liderança cita exemplos cidades vizinhas como Porecatu, Cambé e Ibiporã que desenvolvem jogos abertos e torneios esportivos municipais e regionais sem restringir a participação da população.

“Londrina está atrás de outras cidade da região como Porecatu que tem o JAMPS, Cambe e seus jogos abertos de Cambé e Ibiporã com os seus campeonatos esportivos municipais e regionais e a cena cultura que utiliza o Teatro José Zanelli. Esses municípios fazem isso sem privatizar nada, sem excluir ninguém e sem repressão policial contra a população que está utilizando os espaços públicos expressando sua arte ou praticando atividades físicas”, assinala.

Pires também pondera que os próximos passos envolvem: diálogo com os vereadores, ampliação dos debates que pontuam os motivos pelos quais o PL é desfavorável à população e proposição de atividades que ocupem os espaços públicos.

“Vejo o cenário ainda nebuloso, mas, identifico o início de um movimento dos atores políticos sendo produzidos no sentido de colocar o PL no raio de suas atenções. Estou apontando para a leitura que os agentes políticos municipais e seus assessores passaram a fazer sobre a relação que foi estabelecida entre o PL, suas finalidades e objetivos, e as eleições de 2024”, evidencia.               

O PL prevê que 30% das vagas nas atividades ofertadas sejam reservadas a alunos beneficiados com programas de auxílio de renda federal, estadual ou municipal. Ainda, estipula que caberá ao órgão municipal apenas a fiscalização das atividades desenvolvidas.

“Não é possível que os vereadores desta Casa vão contra a população de Londrina, a periferia de Londrina. Esporte é direitos humanos, é cultura. Esta lei não é da vida saudável. Nós não queremos 30%, queremos 100%”, finaliza Fonseca.

A audiência pública completa pode ser acompanhada a seguir:

Vídeo: Canal Câmara Municipal de Londrina/YouTube

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Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.
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