Defensores públicos reclamam de insensibilidade do Ministério Público e do Judiciário no Paraná com casos de furtos de pequenas proporções
Numa ronda no pequeno município de Maria Helena, no interior do Paraná, a PM recebeu uma denúncia e parou um sujeito conhecido na cidade como “Nego”. Mandaram o homem encostar na parede, todo aquele procedimento que você já conhece, e aí descobriram: Nego estava com um pacote de sobrecoxas de frango preso na cintura. O homem não soube explicar como aquilo tinha ido parar ali, se enrolou todo, até que, pressionado, falou que estava pedindo comida e contou quem tinha lhe dado.
Mas a PM foi até a casa do suposto doador e o homem disse que Nego pegou a comida sem autorização. Além disso, anotou a polícia no Boletim de Ocorrência de abril do ano passado, a vítima agora, reparando bem, via que Nego também tinha comido o Toddy dele. Para a polícia, bastou. Para a promotoria, também. O Judiciário também não hesitou: Nego foi para a cadeia.
Esse é o tipo de prisão que irrita quem conhece o sistema penitenciário brasileiro. As cadeias estão lotadas e não parece fazer o mínimo sentido colocar numa cela cheia, sabe-se lá por quanto tempo, alguém que provavelmente só roubou porque estava passando fome. Além de isso causar mais custos para o Estado, dificilmente alguém deve acreditar que passar uma temporada no inferno dos presídios brasileiros vai “ressocializar” alguém que furtou um pacote de frango e comeu um Toddy alheio.
No entanto, no Paraná, processos que poderiam ser incluídos no princípio da insignificância, com valores por vezes ridiculamente baixos, têm aumentado o número de presos. Na visão de quem trabalha com esses condenados – quase sempre miseráveis – isso se deve não só a uma insensibilidade de promotores e juízes. O problema vai além: o que está em jogo é a lógica da existência de um sistema penal. Afinal, para que punir à toa, e ainda mais com algo tão grave como a pena da liberdade?
Furto famélico
Histórias como as de Nego se multiplicam. Não vamos usar nomes dos presos para não causar ainda mais problemas para quem já passa por uma situação difícil. Mas veja essa outra história: num mercadinho do interior, Fulano foi visto pegando dois pares de chinelos. De novo: era um pobre coitado que não tinha onde cair duro. Enquanto o mercado chamava a PM, Fulano já estava longe – foi pego perto do cemitério local, sem chinelo nenhum.
A história só foi explicada porque um terceiro viu tudo e contou para a polícia. Fulano tinha corrido para o cemitério oferecendo loucamente os chinelos: R$ 5 o par. Não tendo achado compradores, escondeu o seu butim no cemitério para ir buscar depois que a polícia saísse do seu encalço. Não deu certo: como já tinha outro processo, por crimes do mesmo gênero, voltou para o xilindró.
Tem gente que já foi pra cadeia por pegar calça de varal. Por furtar chicletes. Pacote de açúcar e detergente. E a lista não para. O mais difícil de reverter, segundo os defensores ouvidos pelo Plural, é nos casos em que a pessoa já tem antecedentes, ou se está cumprindo regime semiaberto, por exemplo.
Tem um caso de um sujeito, por exemplo, que foi pego com quatro Diamantes Negros e um sachê de café solúvel. Total do furto: R$ 21. Como já tinha outro furto de exatos R$ 21 nas costas, além de uma subtração de um celular de pequeno valor, o Judiciário decidiu que esse realmente não estava pronto para conviver em sociedade e mandou trancar numa cela.
Um chinelo vale a liberdade?
Muitos desses casos acabam indo parar na Defensoria. Se o sujeito furtou chiclete ou um chinelo, certamente não vai ter dinheiro para um advogado particular caro – e aí entram os defensores públicos, que já conhecem a realidade do sistema. E entre eles, a desilusão com o mecanismo judiciário no tratamento dos furtos famélicos é grande.
“Acredito que, infelizmente, ao longo dos anos, a justiça e grande parte dos profissionais que nela atuam esqueceram que estamos lidando sempre com um direito humano básico, a liberdade, que deveria ser tolhida unicamente em situações super excepcionais e justificadas pelo bem público”, diz Cauê Freire Ribeiro, que trabalha em Umuarama e trabalhou em alguns dos casos citados nesta reportagem.
“O que ocorre no dia a dia forense é o encarceramento em massa de consumidores falhos, pessoas em situação de rua e pessoas com dependência química. Ou seja, prende-se porque o sujeito furta para poder consumir, prende-se porque não tem casa, apesar de isto ser um direito constitucional, e prendem-se usuários de droga acreditando (ou nem acreditando mais, mas em razão do hábito) crendo que um problema de saúde pública pode ser resolvida através do acionamento da rede de segurança pública. Enfim, prende-se por tudo e a liberdade, que deveria ser a regra, passou a ser a exceção, a ponto de um par de chinelos ter mais valor do que a liberdade de um ser humano”, afirma.
Fonte: Redação Plural