Rita Lee deixa o planeta, às vésperas de lançar Outra Autobiografia. Nela, vamos ver se o tom irônico sobre a velhice e a proximidade da morte se mantém
Hoje é o dia em que, para todo lado que se olhe, tem gente triste pela morte de Rita Lee. Olhares chorosos e textos pesarosos. Suspeito que ela não dimensionava a falta que fará para descolados e caretas, roqueiros, funqueiros, tiktokers e eruditos. Mas, quem chora, também não imagina como Rita era avessa a melodramas. Achava piegas o título de “rainha” do rock. Preferia “padroeira”.
Em sua autobiografia, lançada em 2016, é muito evidente a armadura palhaça que ela vestia permanentemente, como forma de sobreviver aos absurdos da vida que levou, e ser fiel a sua verdade, fosse ela qual fosse. No livro tem até coisas censuradas, que, por motivos judiciais, precisam ser cobertos por tarja preta. Mas estão lá.
O texto é feito de curtas confissões e memórias, construídas como piadas, em que já lemos nos preparando para a gargalhada que virá. Até trechos trágicos, como “desvirginando” são escritos neste tom involuntário, de quem não sabe contar de outro jeito, sem uma pitada de escárnio, sarcasmo, ironia e deboche. Livro pra ler sempre que se estiver triste.
Aos políticos a vaia
Alguém que trata tudo com essa graça, sem pesar, sempre rindo de si mesma… Alguém que nos faz rir com suas letras de música (até escatológicas, como Tudo Vira Bosta)… Alguém que não foge aos piores episódios da própria vida… Não deve estar a fim de comparecer ao próprio funeral para ouvir falsidades, como ela tratava os elogios fora de hora.
Aliás, ela até antecipou com precisão como serão os obituários no rádio, na tv, nos jornais e no twitter. Em sua profecia, ela imagina que os comentários nas notícias serão: “Ué, pensei que a véia já tivesse morrido, kkk”. Duvido que vá ao velório. Vai preferir tomar um banho de sol num eterno domingo, ou tomar um banho de espuma num dolce farniente.
A relação com a política, esta nunca existiu. Política para Rita era sua atitude no palco, no estúdio, na vida. Frequentemente, seus gestos estridentes, suas caretas, suas tiradas sarcásticas, causavam mais distúrbios que opiniões políticas pretensamente coerentes. Poucas foram tão intuitivamente feministas, sem nunca assumir a carteirinha. Foi uma pioneira com guitarras, entre roqueiros machistas.
Pela aversão a políticos, disse que levantaria para vaiá-los se fossem a seu velório. Não à toa, sua despedida do público será no poético planetário do Ibirapuera, e não na tradicional Assembleia Legislativa, ali ao lado. Deve estar esperando ser abduzida por um disco voador, finalmente, como era seu desejo na velhice.
Sem medo de desagradar
Ser Rita Lee não devia ser fácil. Ela nem contava mais quantos a detestavam, pois sabia dos milhões que fazia feliz com sua música. Sua autenticidade era intimidadora para estranhos e um grande conforto para os queridos e os fãs. Não tinha filtros que evitassem desagradar algum poderoso, alguma corporação ou ofendesse a moral de alguma seita. Sem cálculo, incomodava sem querer, na maioria das vezes. Apenas dizia ou fazia o que lhe vinha na telha.
Sua empatia com o público vinha do niilismo que cuspia contra dogmas, ideologias e cabeças feitas, típico dos artistas nascidos no pós-guerra e amadurecidos no auge do desbunde dos anos 1980. Referia-se a seu tumor maligno como Jair (o Bolsonaro), assim como se sentia aliviada quando Lula deixou o governo com “sua voz de catacumba, cuspindo perdigotos”. Para ela, se faziam algo de bom, políticos faziam menos que a obrigação.
Convidada pelos governos para celebrar o aniversário de São Paulo, não deixou de gritar aos governadores e prefeitos que tirassem “essa bunda da cadeira, seus babacas, e vão trabalhar”. Considerada por Caetano Veloso a mais perfeita tradução paulistana, Rita estava constantemente revoltada com as condições de abandono da cidade. Dizia que São Paulo era a ovelha negra do país.
Sempre transgressora
Essa retração em relação à políticos e governos não deve estar ligada a nenhum evento específico, embora a prisão durante o governo militar e a censura a suas canções devam ter deixado uma marca profunda. Desde criança, Rita era rock’n’roll e transgressora em relação à família conservadora. O pai descobriu que ela tinha uma banda escondida, quando ela passou mal num show colegial e ele teve que levá-la para uma cirurgia de apendicite.
Mas sua religião era a liberdade. Uma liberdade que se expressou por meio da música, mas também das drogas, que quase a destruiram. Só largou-as no nascimento da neta em 2005, aos 58 anos, embora sua postura sobre o tema sempre foi politicamente consciente.
Em muitos momentos da autobiografia e dos relatos não autorizados, é perceptível que, na juventude, Rita se comportava com a irresponsabilidade da “playboizada branca”, que tudo pode, pois sempre será perdoada. De carro, era capaz de jogar restos de comida nas pessoas na rua. Sua autobiografia está plena de impiedade com quase todos que a cercaram, acompanhada de alguma complacência consigo mesma. Deve ter muita gente querendo se vingar.
Mas também era capaz de sequestrar uma cobra que estava sendo pisoteada pelo cantor Alice Cooper num palco, ou uma jaguatirica mal tratada numa loja. Seus vizinhos viviam apavorados com a fauna da casa de Rita. A defesa dos animais foi uma bandeira que levou a sério, até o fim da vida. “Eu odeio rodeio”, é um manifesto desta luta.
Nem contra, nem a favor
No entanto, os militares foram implacáveis com a mulher branca, bonita, bem relacionada, famosa e grávida. Após depor numa delegacia contra um policial que matou um fã seu, por motivos fúteis, durante um show, uma horda de milicos baixou em sua casa para plantar drogas ilícitas em sua casa e levá-la direto para uma prisão feminina.
Até então, Rita não tinha paciência para a resistência à ditadura, pois se considerava ”hiponga comunista com um pé no imperialismo”. A elite cultural da época estava mais interessada em música de protesto, do que no deboche lisérgico dos Mutantes. Mas, na prisão, Rita teve contato com as bandidas que a paparicavam, com os presos políticos que mandaram um violão para ela cantar e com a ignorância e grosseria dos carcereiros.
A aparição de Elis Regina carregando o filho João Marcelo, é a lembrança mais iluminada deste momento na prisão. Rita estava com dores e sangrando, com risco de abortar, sem qualquer atenção médica. Elis já estava rodando a baiana na entrada da prisão, ameaçando chamar a imprensa. Rita não acreditava, que “a rainha do Olimpo musical”, “a maior cantora do Brasil” estivesse ali por ela. Ninguém se atrevia a mexer com Elis. Conseguiu atendimento médico e comidinha de um restaurante para a grávida magrela. Dali nasceu uma amizade eterna. Condenada a um ano de prisão domiciliar, Rita passou maus bocados financeiros.
Irreverência até o fim
A militância se expressou na antipolítica, mas Rita se tornou uma das mulheres mais influentes do país, pela ousadia de empunhar uma guitarra nos palcos tão cedo, a irreverência das opiniões fortes e a defesa de todas as liberdades.
A franqueza de sua autobiografia, que terá uma continuação, permite entender melhor as opiniões de Rita. Sobre os Mutantes e sua música ela é implacável ao retratá-los como pessoas abjetas que fazia música medíocre. Opinião que não se reflete na crítica e no público da banda, consagrada inclusive internacionalmente .
Quando foi presa em 1976, já havia gravado o sucesso Fruto Proibido, com a banda Tutti Frutti. Foi com esse disco que Rita recebeu o título de “rainha do rock”. Após a prisão, a reaproximação da banda foi vista pela cantora como oportunista e falsa.
Sua parceria com o marido Roberto de Carvalho vai se consolidar, após a prisão, com um sucesso atrás do outro e shows em grandes arenas. Esse foi o sucesso que veio acompanhado de internações e acidentes mais graves por causa do consumo descontrolado de drogas. Um episódio terrível foi o assalto violento ocorrido em seu sítio, cometido pelos traficantes que sabiam da presença da cantora famosa. Não se sabe se por sorte, ou azar, Rita não estava no local, pois estava internada após cair drogada da varanda e quebrar o maxilar.
Continuou conquistando fãs com suas letras afiadas e melodias pop cantadas por todo o país. Teve várias atuações na televisão graças a seu carisma com a câmera. Encerrou a carreira de shows em outro episódio polêmico com a polícia no Festival de Verão de Sergipe, ao se revoltar contra a agressividade com o público. Foi detida por desacato à autoridade.
Desde então, resolveu curtir a velhice num sítio, de onde deu parcas entrevistas e escreveu Outra Autobiografia, prevista para ser lançada no próximo dia 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia. Ela considera esta data seu aniversário, em protesto contra o efetivo, que ocorre no dia 31 de dezembro, ao som de “Feliz Ano Novo”.
Evidentemente, está todo mundo curioso com a nova peripécia literária de Rita, sobre os últimos três anos de vida, entre a pandemia e o diagnóstico de câncer.
“(…) quando decidi escrever Rita Lee: Uma autobiografia (2016), o livro marcava, de certo modo, uma despedida da persona ritalee, aquela dos palcos, uma vez que tinha me aposentado dos shows. Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta. Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica”, escreveu a cantora ao anunciar a novidade.
Fonte: Portal Vermelho