Lentamente, sem que nos apercebamos, esvaindo-se por nossos dedos, o SUS vai sendo desmontado.
Temos o SUS, ele ainda funciona, ele ainda é um sistema em construção, mas por dentro e por fora, cada vez mais temos um outro sistema de saúde sendo cravado em nossa realidade sanitária, fantasiado de SUS. Um sistema de saúde crescentemente mais vinculado ao interesse financeiro, agora com presença de capital estrangeiro, voltado mais para ganhar dinheiro e menos para cuidados reais com a saúde das pessoas.
Nos serviços de assistência de média e alta complexidade temos pouquíssimo serviços efetivamente públicos. Mesmo na saúde suplementar dos planos e seguros de saúde, vemos um intenso avanço de empresas de capital estrangeiro adquirindo as grandes operadoras nacionais e agindo com muita voracidade financeira, ganhando dinheiro aqui e aplicando no mercado financeiro internacional.
Até mesmo nas atividades da atenção primária à saúde começa a se consolidar um onda privatista de terceirizações que pode, a médio prazo, descaracterizar completamente o atendimento integral à saúde (que requer serviços de promoção, prevenção, atendimento e recuperação da saúde) e se concentrar apenas na ação de atendimento meramente curativa, que vai sacrificar a médio e longo prazo a qualidade da saúde dos brasileiros.
Permeando e cumprindo esta lógica de sistema de atendimento, médicos e profissionais de saúde não são mais contratados como trabalhadores do setor: eles são obrigados a abrir empresas individuais para que seus CNPJs sejam “contratados” sem nenhuma garantia de direitos e proteção trabalhista, virando “diaristas” da saúde, que só ganham “os dias que trabalharem”, sem salário fixo, piso salarial, direito a férias, décimo terceiro, etc. e com a obrigação de fazer número, ou seja, consultar pilhas de pacientes em seu horário, piorando muito suas condições de trabalho e a qualidade de seu atendimento.
Quando vemos os gastos com assistência à saúde no Brasil, deparamo-nos com alguma situações que eu considero alarmantes. O montante destes gastos chega a cerca de 9% do PIB nacional, percentual próximo ao dos EUA e de países desenvolvidos. Porém, deste total, apenas 3,7% vêm dos cofres públicos para pagar os atendimentos no SUS. Os cerca de 5,3% restantes nós pagamos diretamente de nosso bolso, fora do SUS, na forma de pagamento de consultas, compra de remédios, realização de exames e procedimentos, mensalidades de planos ou seguros de saúde ou diretamente nas famosas “clínicas populares”.
Dos 3,7% do PIB que vão para atendimento público do SUS, algo que hoje passa dos R$ 200 bilhões/ano, podemos considerar que pelo menos metade é gasta para pagar produtos da indústria médico-hospitalar, como remédios, insumos, equipamentos simples e sofisticados, muitas vezes não necessários ou resolutivos para os problemas de saúde dos pacientes.
Da outra metade, parcela cada vez maior de hospitais privados e serviços de saúde contratadas pelo SUS está ficando com empresas financeiras nem sempre ligadas ao setor de saúde, que em grande número investem esses lucros no mercado financeiro internacional, com reversão cada vez menor em investimentos e melhorias na estrutura de assistência.
Tudo isso pode fazer com que a assistência à saúde no Brasil, escudada na pele do SUS, transforme-se num grande mercado financeiro, que venha a movimentar uma volumosa quantidade de dinheiro, o que pode levar a colocar em segundo plano o objeto central do sistema de saúde, que tem de ser o cuidado integral com a saúde do brasileiro.
Texto: Gilberto Martin, médico sanitarista