Uma em cada 10 crianças entre 6 e 12 anos de idade experimentam sentimentos constantes de tristeza, o símbolo oficial da depressão.
PAZ
De carteira em punho, rumei para a loja de brinquedos. Véspera de Natal, a criançada em casa, salivando pelas novidades de logo mais à noite. Seguia lembrando meus natais iluminados por presentes de estalar os olhos, como ovos na frigideira.
Às vezes, ganhava bolinhas de gude. Coloridas! Com elas, enchias os bolsos da calça curta; com uma tampa de sodinha cavava um buraco na terra batida, um círculo ao redor e partia para cima dos colegas.
Durante dias, quando a noite já nos chamava para o banho, de mãos sujas, meia-lua da unha do dedão escavada de tanto atritar nas bolinhas, cada um de nós chegava em casa com os bolsos forrados de gude. Ou vazios. Desenhado no marrom da cara, o branco dos dentes atestava nossa felicidade.
Às vezes, ganhava peão de madeira. Molhava de cuspe sua ponta de prego e por ai começava a enrolar a fieira. Dava voltas justas até chegar ao topo. Amarrava o resto da fieira nas mãos, mirava com um dos olhos os peões adversários, quebrava o organismo para trás, soltava a maguasca do braço, e a peça saia zunindo.
O peão que conseguisse arrancar do círculo era meu. Depois, as habilidades: pegar peão no V dos dedos e obrigar o bichinho girar no palma da mão; rodá-lo na unha do polegar; enrolar a fieira enquanto jogasse, jogá-lo para o ar e, depois, equilibrá-lo na testa… Da última vez que raspei a cabeça, dei de cara com a marca esquecida de um peãozinho de estimação que teimou girar errado em cima do meu couro .
Às vezes, ganhava um bilboquê. Se não ganhasse, fazia um com lata de extrato de tomate. Duas delas é um barbante virava telefone. Bilboquê de verdade era feito de madeira, difícil de encaixar . De tanta pancada deixava roxas as costas das mãos . Apesar disso, ninguém desprezava uma queda.
Às vezes, não ganhava nada no Natal. Não era bom, mas acontecia. Nesses casos, ia rodar meu pneu; rodar aro de bicicleta; ia pastorear as buchas colhidas na cerca que com palitos de fósforos enfiados como pernas e chifres, eram as vacas do meu rebanho, ou ia lá num faz-de-conta qualquer, que na meninice dos meus pra-lá-de-doze-anos, servia para brincar de pé-na-lata, esconde-esconde, mãe-da-rua ou alguma brincadeira daquelas que até hoje me fazem feliz quando veem à lembrança .
Às vezes, ficava calado e de barriga para cima olhando urubu brincar de roda no céu, sem bater as asas; ou adivinhando que disfarce de bicho estava em cada nuvem; ou quantos anos ainda faltava para eu poder ir na zona…
Entrei na loja de brinquedos com esses olhos chegados do além. E foi com eles que vi os presentes que agora ficam no lugar das bolinhas e bilboquês: Gorilla Attack, Gurreiros da Morte, Parque do Tubarão, Gun-Bot, Sexta Treze, Dinossaur-Bot, Die Cast Metal, Rob-Trop, Attack Tix, Action Man Atom, Piranha Assassina, Super Ninja Set, Aerial Attack…
A mensagem é clara, desenhada em cada caixa de brinquedos: há uma natureza monstruosa que precisa ser combatida, subjugada; há um mercado que oferece a excitação como tática de venda. Um mercado ciente de que só a excitação do medo alivia o fardo de uma vida sem sentido, dei-meia-volta. Na parede que dá para a porta de saída, a pintura de um aviãozinho, em um céu azul de anil, puxava uma faixa onde se lia: PAZ!
Paz? Estávamos mais perto dela quando mais próximos dos peões e telefones de latinhas de extrato de tomate.
A infância é quando o jogo sério da inocência precisa ser jogado com todas as forças. A sociedade que não percebe isso ou que instrumentaliza suas crianças para propósitos pouco confessos está criando problemas. Criança medrosa é adulto covarde. Criança excitada é adulto violento.
Não se pode ter gorilas, ninjas e piranhas assassinas na prateleira e mensagens de paz na porta de saída. Ou um, ou outro!
Voltei para casa com os bolsos cheios de bolinhas de gude e com a mesma sensação do cientista que fez reviver um mamute nos dias atuais. Bonito! Mas como contextualizá-lo? Que moleque vai brincar com bolinha de gude com os meus bacuris? Esse mundo ainda está para peões e bilboquês?
Vou apanhar dos meninos, mas vou encarar.
Texto: Luiz Eduardo Cheida é pai e gastroenterologista em Londrina