O ano mais quente da história também trouxe consequências à população brasileira e à biodiversidade do país
O ano de 2023 entrou para a história do Brasil como o mais quente já registrado, com meses seguidos de recordes de temperaturas, seca no território amazônico e temporais catastróficos, principalmente na região Sul. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), o calor ficou acima da média histórica de julho a novembro
Com pouco mais de 34 mil habitantes, a cidade mineira de Araçuaí registrou o dia mais quente já observado em território nacional no mês passado. A marca de 44,8ºC foi atingida em meio a 8ª onda de calor de 2023. Nos últimos meses, diversos outros municípios, de todos os tamanhos, também vivenciaram recordes históricos.
Também em novembro, a MetSul Meteorologia alertou o país para um cenário muito fora do comum. “O que os modelos mostram de calor é tão extraordinário e fora da curva histórica, que a onda de calor pode ser a mais intensa já registrada no Brasil em temperatura máxima”, dizia texto divulgado pela organização.
O informe preocupava porque, em setembro e outubro, algumas capitais já haviam ultrapassado recordes históricos. O que se viu até esta última semana do ano, foi uma continuidade do cenário nos meses seguintes. A explicação está no fenômeno El Niño e no aumento da temperatura no planeta, causado por atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis.
“Apesar da influência do El Niño, nós temos os chamados estudos de atribuição, que conseguem dizer o quanto um evento climático extremo foi potencializado por conta das mudanças climáticas. Sabemos que a intensidade não seria a mesma se não houvesse a crise climática. Sabemos também que, em 2024, provavelmente, vamos continuar vendo recordes sendo quebrados, já é um alerta que os cientistas fazem”, afirma a especialista em política climática do Observatório do Clima Stela Herschmann.
Ela lembra que os eventos extremos vitimam mais as famílias de menor renda e fortemente marcadas pelas desigualdades. “Aquelas populações que não causaram mudanças climáticas, em geral, são as mais afetadas. No Brasil, ela tem raça, faixa de renda e cor. Quando as chuvas atingem (um local), a primeira casa que desmorona é a da população mais pobre, da população negra. A infraestrutura é pior, os sistemas de alerta são piores, até a forma de sair da situação é pior. Também vimos isso na seca da Amazônia, onde a populações inteiras ficaram isoladas. Imaginamos a Amazônia com toda aquela abundância de águas e a população não tinha água para beber.”
Seca na Amazônia e chuva no Sul
A emergência climática causou a maior seca já observada no território amazônico. Somente no estado do Amazonas, mais de 60 municípios entraram em estado de emergência durante a estiagem. A falta de chuva durou mais de quatro meses.
Nesse período os cursos de água da região baixaram para níveis nunca registrados. Meio de transporte de boa parte do trânsito de pessoas e insumos da região, os rios secos isolaram comunidades inteiras. Na capital, Manaus, as queimadas na floresta levaram a população a respirar o ar com pior qualidade do planeta.
As consequências às populações indígenas e ribeirinhas a às parcelas mais vulneráveis dos ambientes urbanos reforça alguns dos aspectos mais cruéis das mudanças climáticas, a desigualdade e o racismo ambiental.
Nas primeiras semanas de setembro, segundo o Instituto de Pesquisas Espaciais, a região amazônica registrou quase 1 mil focos de incêndio. No mês seguinte, outubro, a média superou recordes e passou de 3 mil fontes de fogo.
Uma pesquisa da USP publicada na revista científica Nature revelou temperaturas de até 40ºC na copa das árvores. Acima de 44ºC, a floresta passa a entrar no chamado ponto de não retorno, quando a recuperação vegetal e da biodiversidade deixa de ser possível.
Segundo o MapBiomas a área ocupada por lavouras, garimpos e pastagens na Amazônia chegou a 15% nos últimos anos. A perda líquida de vegetação está próxima de 10%. O Brasil é um dos países que mais desmata, quase 19%. Segundo cálculos científicos, o ponto de não retorno ocorre a partir de 20% e 25% de perda da cobertura vegetal.
Na outra ponta do país, a região Sul, que também passou períodos de eca intensas nos últimos anos, presenciou temporais, ciclones e muita destruição causada pela chuva. Entre setembro e junho e setembro, o Rio Grande do Sul registrou quase 70 óbitos por causa dos temporais. Milhares de famílias ficaram desabrigadas.
Em outubro, com a população ainda tentando se reerguer, o estado foi novamente abalado por eventos climáticos, que deixaram mais de 7,5 mil pessoas desalojadas. A chuva também atingiu Santa Catarina, onde o mês contabilizou quase 300 municípios em situação de emergência. Cerca de 6 mil pessoas tiveram que deixar suas casas.
No mês seguinte, a região Sul do país registrou o terceiro evento de chuva extrema com ocorrência de óbitos. Três pessoas morreram. Quase 50 municípios notificaram a defesa civil e a população afetada ultrapassou 30 mil.
COP 28 e o futuro do clima
Os eventos climáticos que atingiram o Brasil em 2023 trouxeram ao território nacional as consequências de uma crise que afeta todo o planeta. Segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), a temperatura da Terra ficou 1,4°C acima da média histórica em 2023. O ano foi o mais quente já registrado em 174 anos
Ainda de acordo com as análises da OMM, as emissões de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso atingiram níveis recordes. Os três principais causadores de poluição no planeta estão diretamente relacionados às mudanças climáticas.
“Este ano foi chamado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, de ano de ebulição global. O calor vai ser cada vez mais comum. É assustador pensarmos que 2023, apesar de ter sido o mais quente, provavelmente será o ano mais fresco dos próximos que vamos viver. É uma tendência que sabemos que foi causada pela humanidade. Nós somos a causa determinante. Principalmente com a queima de combustíveis fósseis, mas também com a emissão de gases de efeito estufa, atividades como as queimadas e o desmatamento”, aponta Stela Herschmann.
No ano em que o mundo e o Brasil sentiram a força da crise do clima, líderes globais se reuniram em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, para tentar chegar a um acordo de redução das emissões na COP 28. A Conferência levantou polêmica antes mesmo de ser realizada. Organizações criticaram a escolha da região que mais produz petróleo no mundo como sede do evento.
O resultado final também não agradou. Após duas semanas de negociação, as lideranças apresentaram uma proposta de ação com objetivo de diminuir as emissões de gases de efeito estufa nas próximas décadas. O documento, no entanto, não se compromete diretamente com o fim do uso dos combustíveis fósseis, principal causa do problema.
Não faltaram críticas ao Brasil. Apesar de uma presença no encontro pautada pela defesa do fim das emissões, o país promoveu o leilão de mais de 600 áreas de exploração de petróleo e gás fóssil um dia após o fim da COP 28. Segundo alerta do ClimaInfo, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) ofertou blocos próximos ou sobrepostos a Terras Indígenas, comunidades quilombolas e Unidades de Conservação.
Além disso, o Brasil anunciou, ainda durante o evento, que iria aderir à Organização dos Países Exportadores de Petróleo e Aliados (Opep+). Durante toda a conferência, o grupo de países produtores pressionou lideranças na conferência para que o documento final do encontro não citasse os combustíveis fósseis.
“Tivemos diversos momentos do ano em que a média da Terra estava a 1,5 grau e, pela primeira vez, ultrapassamos dois graus acima da média pré-industrial. Ou seja, já tivemos um gosto do que é o mundo se não conseguirmos cumprir o acordo de Paris – tratado que o mundo celebrou em 2015 para enfrentar a crise climática, que fala em esforços para limitar o aumento da temperatura”, alerta Stela Herschmann.
Fonte: Brasil de Fato