Só 9% dos PMs usam câmera corporal; 3 estados concentram 92% das máquinas
Forças policiais mais numerosas do país, as polícias militares têm, somadas, um déficit de 179.591 agentes. Já as polícias civis, que têm as atribuições de investigar crimes, fazer perícia e indiciar suspeitos, funcionam com 55.244 servidores a menos do que o previsto.
Isso significa que as duas forças operam, respectivamente, com ocupação de 69,3% e 63% das vagas previstas, segundo informações das corporações dos estados e do Distrito Federal. Ao todo, o país tem 404.871 PMs e 95.908 policiais civis.
É o que mostram dados do Raio-x das Forças de Segurança Pública no Brasil, divulgados nesta terça-feira (27) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. As informações correspondem às previsões de 2022 e aos efetivos em 2023.
Os números de déficit foram informados por cada corporação ao Fórum —não há padronização nos cálculos de efetivo, nem na definição de qual seria o número ideal de agentes.
Considerando o efetivo das polícias civis, o déficit na ocupação de vagas previstas é mais acentuado na Paraíba (23,8%), no Rio Grande do Norte (30,3%) e em Alagoas (39%).
Já em relação às polícias militares, as ocupações mais baixas de postos previstos são de Goiás (35,7%), Amapá (39,2%) e Santa Catarina (46,1%).
Ainda, houve queda de 6,8% no número de postos ocupados nas polícias militares desde 2013, considerando a média nacional. A redução foi registrada em 17 unidades federativas, liderada por Distrito Federal (31,5%), Rio Grande do Sul (22,5%) e Paraná (19,4%).
As reduções no efetivo ao longo do tempo podem ser explicadas, segundo o diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima, pela pressão de custos.
“A previdência tem um impacto muito grande em termos quantitativos, são mais de 352 mil policiais aposentados nos estados e no DF. Então você não consegue fazer concurso para substituir.”
A perda de postos ocupados entre polícias civis foi de 2% de 2013 a 2023, com destaque para Rondônia (30,6%), Rio de Janeiro (25,3%) e São Paulo (19,5%).
Um dos principais problemas apontados é a baixa capacidade das corporações nos estados para investigar e solucionar crimes. Uma forma de monitorar esse trabalho, ao menos por meio de inquéritos, é verificar a quantidade de relatórios desses procedimentos, que teve queda em oito estados e no Distrito Federal na comparação de 2021 com 2022, ano mais recentes com dados disponíveis.
Embora não haja critérios definidos para dimensionar e contratar os efetivos necessários em cada estado, a análise da remuneração também aponta distorções no país. Um grupo restrito de 33.179 profissionais —que chegam a 5,4% dos 620.018 profissionais com informações disponíveis— receberam, em 2023, uma remuneração acima do teto constitucional, de R$ 39.293.
Por outro lado, enquanto são responsáveis por ao menos 644 mil presos nos sistemas penitenciários estaduais, os policiais penais são a classe com a pior remuneração média entre os servidores da segurança, com salário médio de aproximadamente R$ 8.000.
Se as 27 unidades da federação não seguem regramentos claros sobre a previsão do efetivo e reposição de agentes, ainda precisam lidar com distorções em progressão, como ocorre na polícia militar.
Considerando a média entre corporações, um subtenente, posto máximo dos praças, pode chegar a ganhar R$ 11,4 mil. Já um tenente, primeiro cargo entre oficiais, tem uma média de salário inicial de R$ 14,3 mil.
Segundo o estudo, além do déficit nas polícias, outro desafio é a situação das guardas civis municipais.
Considerando dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, 34 cidades tinham efetivo acima do permitido pelo Estatuto das Guardas Municipais, de 2014 —o limite depende do tamanho da população de cada cidade.
De acordo com a publicação, a soma de informações da Rais com a da pesquisa de municípios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) indica ao menos 95.175 agentes em 1.467 cidades no Brasil.
Segundo o Fórum, o aumento dessas instituições é um problema porque isso acontece exatamente devido ao espaço deixado pela defasagem das polícias. “Percebe-se nos últimos dez anos uma queda no número de PMs e o aumento na criação das guardas”, afirma Lima. “E são cidades pequenas que estão fazendo isso, fica ainda mais complexo integrar e articular a segurança pública.”
Ainda para o Fórum, a decisão do governo Lula (PT) de ratificar o poder das guardas de fazer abordagens e prisões em flagrante sem uma dimensão real de seu efetivo foi um problema. “Publicaram o decreto das guardas sem ter o número, o crescimento, sem fixar critérios de monitoramento e supervisão.”
O QUE ACONTECEU
Encolhimento no policiamento ostensivo. A PM, responsável pelo policiamento ostensivo nas ruas, teve uma queda de 6,8% no efetivo nos últimos dez anos no país, segundo o “Raio-X das Forças de Segurança Pública do Brasil”. Em 2013, eram 434.524 agentes. No ano passado, o número passou para 404.871. A instituição possui o maior efetivo das forças de segurança — com um total de 404.871 servidores.
Dois PMs para mil habitantes, em média, no país. Além dos números, outros fatores, como funções e atividades, devem ser observados. “Não existe um critério único no Brasil que determine a quantidade necessária de servidores”, explica Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Agentes exercem outras funções dentro da polícia, não exclusivamente o policiamento. Segundo os dados, o Amapá tem 4,2 PMs para cada mil habitantes e é o estado mais violento do país. “Muitos policiais acabam deslocados para atividades-meio, as instituições estão mais voltadas para atender o poder público e menos disponíveis ao trabalho final”, diz o presidente da entidade.
Na Polícia Civil, responsável pelas investigações para solucionar crimes, o país tem um efetivo 36,5% menor do que o previsto — o que significa 55.111 a menos em atividade. Isso tem um impacto negativo para a resolução dos delitos. Somadas, a Polícia Civil e a Perícia Técnica contam hoje com 113.899 agentes no país. Em 2013, os dados levantados pelo estudo mostram que eram 116.169 servidores.
Gargalo de policiais civis: a taxa nacional é de um profissional para cada 2.000 habitantes. Das 24 unidades da federação com dados disponíveis, 16 apresentaram o percentual de ocupação das vagas abaixo da média nacional. Os estados com situação mais crítica são Paraíba e Rio Grande do Norte.
Guardas Municipais: números mostram crescimento. Segundo o levantamento, enquanto as polícias estaduais tiveram redução do número de servidores, o número de guardas aumentou substancialmente. Em 2014, o Brasil havia 1.081 cidades com GCMs, número que chega a 1.467 em 2023 — representando um crescimento de 35,7%.
“Com a redução de efetivo, a PM faz menos patrulhas nas ruas, aumentando a possibilidade de o crime acontecer. Já as polícias civis estão perdendo a capacidade de concluir as investigações. Isso fortalece discursos de que ‘bandido bom é bandido morto’, aumentando a sensação de impunidade para a população”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
GUARDAS MUNICIPAIS NO POLICIAMENTO
Falta de padronização na atuação das guardas no país. Membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e doutorando em Políticas Públicas da UFABC, Lívio Rocha disse que um dos problemas do aumento da atuação das guardas municipais é a falta de um protocolo que oriente as atividades dos agentes. “A atuação da Guarda não tem um padrão e depende da governança em cada município. Ninguém consegue bater o martelo e nacionalizar a atuação desses agentes.”
Furtos, roubos e áreas de “cracolândia” modificam o cenário de combate ao crime. Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum, diz que houve uma alteração no cenário de atuação das forças de segurança. “O Brasil tem um sistema de segurança que chegou ao seu limite nos últimos dez anos, com aumento de furtos e roubos em regiões como a da ‘cracolândia’ em São Paulo. A realidade mudou e exerceu uma pressão gigantesca sobre os governos municipais.”
Administrações municipais investem em policiamento, diz Lima. “As prefeituras estão criando guardas para dar conta de uma atividade que é de responsabilidade das cidades, mas não exclusivamente delas. As administrações municipais se veem obrigadas a investir no policiamento por motivos políticos e exigências práticas. Mas é enxugar gelo em detrimento da necessidade de mudanças estruturais”, afirma o presidente do Fórum.
Ausência de controle nas Guardas Municipais. Segundo Lima, não existe atualmente um controle sobre as atividades exercidas pelos agentes nos municípios. “É um ponto de alerta importante: a Guarda Civil é uma instituição pouco controlada. Quem fiscaliza as atividades exercidas por eles? Há um risco de as prefeituras investirem em uma força de segurança pouco regulada.”
As Guardas Municipais estão previstas na Constituição Federal. Segundo o texto, elas são destinadas à proteção dos bens, serviços e instalações dos municípios brasileiros. Em 2014, com a criação do Estatuto das Guarda, ampliou-se a competência dos órgãos estipulando que atuassem junto com os órgãos de segurança. Desde então, elas passaram a atuar em atividades que antes eram exercidas pelas polícias.
“Não se está resolvendo o problema imediato que é a solução do conflito, a administração da ordem. Não se está gerando segurança pública. Apaga-se o incêndio, mas não se reduz a impunidade”, afirma Renato Sérgio de Lima.
EFEITOS DA REDUÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS ESTADUAIS
No total, o país tem 1.595 corporações diferentes dedicadas à área de segurança pública. Entre elas, as principais são Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, policiais militares, polícias civis e corpos de bombeiros. As três últimas são de competência estadual. Segundo os dados, são 796.180 profissionais.
A redução do efetivo provoca consequências na saúde mental dos agentes, avaliam os pesquisadores. “Vemos muitos policiais tendo que vender a folga porque a demanda de trabalho é muito maior do que conseguem dar conta”, afirma Lima.
SÓ 9% DOS PMS USAM CÂMERA CORPORAL; 3 ESTADOS CONCENTRAM 92% DAS MÁQUINAS
Apontada como uma importante ferramenta para apurar atos de violência cometidos por e contra policiais militares em serviço, a adoção de câmeras corporais ainda é tímida no Brasil. Apenas 8,8% dos agentes usam o dispositivo, segundo levantamento do UOL com secretarias de Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal. São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina concentram mais de 92% dos equipamentos.
QUE ACONTECEU
Sete estados informaram usar o equipamento, o equivalente a 26% das unidades da federação. São eles:
– Minas Gerais
– Pará
– São Paulo
– Santa Catarina
– Rio de Janeiro
– Rio Grande do Norte
– Roraima
Juntos, eles têm 27.184 câmeras em operação. No total, o país tem 308.963 policiais operacionais —aqueles que prestam diretamente os serviços de segurança pública nas ruas, sem contar os que estão no serviço administrativo.
A reportagem usou dados do número de policiais compilados pelo Ministério da Justiça, de 2022, o mais recente disponível. Nenhuma das secretarias que usam os equipamentos informou seu efetivo.
18 unidades da federação informaram estudar, testar, ter processos em andamento para a compra ou aguardar a definição do Ministério da Justiça sobre o tema. A pasta elaborou um projeto de lei que busca institucionalizar o uso dos equipamentos.
Mato Grosso informou não usar câmeras e não disse se pretende adotá-las. O comandante-geral da PM de Mato Grosso, coronel Alexandre Mendes, já se posicionou contra a política. O estado registrou 96 mortes decorrentes de intervenções de policiais militares em 2022, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Goiás disse que não utiliza o equipamento e nem há prazo para que isso aconteça. Em 2022, 538 pessoas morreram em decorrência de ações policiais. O Ministério Público pediu à Justiça que policiais usassem câmeras corporais durante as ações. A Justiça determinou a instalação delas, mas o governo recorreu, e a liminar foi suspensa.
SP, RJ E SC CONCENTRAM MAIORIA DAS CÂMERAS
Entre os que adotam os equipamentos, apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina têm mais de 10% de suas tropas com câmeras. Os três estados reúnem 92% dos equipamentos em operação no Brasil.
Rio Grande do Norte tem o menor percentual de agentes com câmeras: 0,2%. São 15 equipamentos para 6.618 agentes. Segundo o governo, os planos para expandir esse número ainda estão em nível de planejamento. Já Roraima conta com 40 equipamentos, o equivalente a 2,8% de policiais monitorados.
É importante ressaltar que nem todos os policiais trabalham ao mesmo tempo. Por isso, o número de câmeras disponíveis por turno pode ser maior. Santa Catarina, por exemplo, diz que o uso e a quantidade atuais das câmeras estão projetados para que pelo menos um dos policiais de cada guarnição esteja equipado. São 2.245 câmeras e 8.776 PMs operacionais.
Lentidão se deve à tensão política entre governadores e corporações, diz o pesquisador Marcos Rolim. A decisão de adotar as câmeras cabe ao governador.
“Os governadores não têm gestão sobre as polícias brasileiras. Eles negociam com elas porque há muito temor de que uma medida considerada impopular entre os policiais possa trazer impacto muito negativo no seu governo. E eles têm razão em temer isso, porque as polícias são forças que podem permitir avanço da criminalidade, boicotar governos.”, diz Marcos Rolim, pesquisador em direitos humanos.
Também há um processo recente de radicalização, diz o autor de um artigo científico recente comparando experiências internacionais de uso de câmeras corporais. As polícias de ao menos 25 países utilizam câmeras corporais.
Em São Paulo, as câmeras passaram a ser usadas em 2020. Depois que a Polícia Militar passou a adotar o equipamento, a letalidade provocada por policiais em serviço caiu 62,7% no estado, passando de 697 mortes em 2019 para 260 em 2022. No entanto, reportagem do TAB mostrou que PMs paulistas aprenderam a manipular câmeras corporais e a burlar o sistema de armazenamento das imagens captadas em serviço. Depois de questionar a efetividade dos equipamentos, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou avaliar a possibilidade de adquirir mais câmeras.
‘SEGUIR A CIÊNCIA É ADOTAR AS CÂMERAS’
“No Brasil, se faz segurança pública muito mais pela ideologia que pela ciência. A câmera protege o policial, ela é favorável à população. Se for seguir a ciência, você irá adotar as câmeras.”, afirma Rafael Alcadipani, professor da FGV e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“A história do Brasil, especialmente na área da segurança pública, é o desenvolvimento de políticas que não dialogam com a ciência. Se há um critério efetivo que impeça a manipulação de imagens, um conjunto de cuidados básicos, é muito importante o uso da câmera para a redução de violência, mesmo em alguns países que não têm uma tradição de violência policial”, diz Marcos Rolim.
Fonte: Semana On