A falta de articulação do governo federal com estados e municípios contribuiu para a deterioração da rede de assistência social no país, avalia a ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Márcia Lopes.
Em entrevista à Folha, ela afirma que há um “diagnóstico arrasador do ponto de vista do aumento da pobreza e das desigualdades” e que será preciso fazer um esforço coordenado para restabelecer as políticas e identificar as famílias que precisam da ajuda do governo. Haverá necessidade também de recompor recursos em pelo menos R$ 2,7 bilhões.
Márcia Lopes é uma das coordenadoras do grupo técnico de assistência social, ao lado da senadora Simone Tebet (MDB-MS), da ex-ministra Tereza Campello e do deputado estadual André Quintão (PT-MG).
Uma das primeiras ações, segundo ela, será uma análise do Cadastro Único de programas sociais, com a participação de estados e municípios, para identificar eventuais falhas e corrigi-las. “Vamos chamar os secretários municipais. O presidente fala muito da participação dos conselhos, das conferências. É um novo pacto social”, diz.
PERGUNTA – Qual é o diagnóstico da situação da assistência social, do Auxílio Brasil, que vai provavelmente voltar a se chamar Bolsa Família?
MÁRCIA LOPES – A partir do governo Lula, a gente implantou o Sistema Único de Assistência Social [o Suas], fazendo uma organização em todo o país. Nós profissionalizamos a área, saímos de um orçamento de R$ 8 bilhões em 2004 para R$ 84 bilhões em 2016 entre benefícios e serviços. E o que aconteceu [depois] foi uma paralisação. Teve um desmonte, o orçamento voltou a ser o que era antes de 2002 para serviços. O que deveria ser de no mínimo R$ 2,7 bilhões foi cortado para o ano que vem em 96%, virou R$ 128 milhões. Ou seja, extingue o Suas.
Outra questão é em relação à segurança alimentar, que é uma política transversal. Eu coordenei o GT [grupo de trabalho] Fome Zero com 13 mistérios, e a gente tinha ali alimentação escolar na Educação, vigilância nutricional na Saúde, Pronaf [programa de financiamento para a agricultura familiar], no MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário], cisternas, restaurantes populares, bancos de alimentos. Isso tudo se perdeu no atual governo. Houve um desmonte, tanto do orçamento quanto da estrutura e do funcionamento.
O governo federal coordena as políticas, cofinancia, mas ele não pode fazer sem os estados e municípios. Esse pacto federativo foi quebrado. Houve uma ruptura, falta de diálogo, distanciamento, resoluções que foram feitas de cima para baixo. É um diagnóstico arrasador do ponto de vista do aumento da pobreza e das desigualdades.
P.- Quais serão as prioridades no começo do governo?
ML- A primeira prioridade é combater a fome, mas para isso você já começa a articular políticas setoriais que também conversam com o próprio desenvolvimento do país. Tanto a transferência de renda quanto a melhoria da alimentação escolar, do cuidado na saúde, da retomada da produção dos alimentos. Minha proposta inclusive, estando na transição da assistência social, é já começar essa articulação com as outras áreas.
É nessa trama de integração de políticas que a gente de fato vai ter uma orientação do nível nacional, construindo com os estados e municípios. Nós vamos chamar os secretários municipais. O presidente fala muito da participação dos conselhos, das conferências. É um novo pacto social. E conseguir o Orçamento para assegurar a transferência de renda, isso é fundamental, por isso essa articulação no Congresso.
P.- Conseguindo os recursos, dá para fazer um trabalho relativamente rápido?
ML- Não tenho dúvida. Quando a gente começou o Fome Zero, a gente fez uma planilha cruzando os dados e foi muito rápida a redução da mortalidade infantil, da desnutrição, e [o aumento] da permanência das crianças nas escolas, por causa das condicionalidades. E cada área vai tentar buscar a sua reestruturação. Em cada município, tem muitos serviços que não fecharam porque o prefeito segurou. Se você resgata o mínimo de orçamento, retoma o repasse dos recursos, isso já dá uma condição de eles trabalharem juntos.
P.- Quanto seria necessário para restabelecer essa rede de serviços de assistência?
ML- Para a gente resgatar, restabelecer o que já tinha, precisa de R$ 2,7 bilhões. E para atualizar, ampliar a demanda aos serviços, aí seria em torno de R$ 6 bilhões, isso para serviços. Cras [Centro de Referência de Assistência Social], Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], centro de população de rua, voltar o repasse do índice de gestão descentralizada, para formação, para erradicação do trabalho infantil.
P.- Especialistas afirmam que o formato atual do Auxílio Brasil gerou uma distorção no CadÚnico, que incentiva a divisão de famílias. Como a sra. vê esse problema e de que maneira é possível solucioná-lo?
ML- Essa questão é [observada] porque também houve uma interrupção na forma como as coordenações estaduais do Cadastro Único, os coordenadores locais, eram chamados e cobrados, inclusive em relação à atualização da base de dados, a dinâmica que existia das visitas domiciliares, da participação das famílias. Quando o auxílio emergencial [concedido durante a pandemia] faz essa quebra, dispensa os estados e municípios e faz diretamente essa transferência, isso [quantidade de falhas] foi acumulando.
Não tenho dúvida de que uma das primeiras ações do Ministério será uma análise do CadÚnico, com a participação dos municípios e dos estados. Tenho certeza que o CadÚnico é um instrumento de gestão fundamental e que ele vai ter que ser analisado e de fato aprimorado, para ter total transparência e [estar] sempre integrado aos serviços locais.
P.- Pode ser necessário reunir novamente essas famílias que se dividiram na busca de um valor maior de benefício, ou então rever o desenho do Bolsa Família, retomando o valor por pessoa?
ML- Até aqui, o que nós temos de informação e de decisão é assegurar que nenhuma família vai receber menos, pelo menos nos próximos meses. Acho que tudo é passível de ser melhorado e aprimorado, mas na perspectiva de assegurar o direito das famílias e as necessidades.
Nós sabemos bem que nem os R$ 600 são suficientes para uma família se manter durante um mês, haja visto o preço dos alimentos, o preço do gás. Então os R$ 600 por família estão assegurados, mais a ideia dos R$ 150 por criança até 6 anos.
A gente vai até dezembro fazendo essa transição, o diagnóstico, um documento consistente para o presidente Lula. A equipe que assumir vai ter essas informações e a análise do que fazer. Uma política pública tem que ser transparente, justa, ter consistência e previsibilidade.
E o CadÚnico é a mesma coisa. A gente nem sabe bem, quando você fala que as famílias se dividiram, quantas são, onde estão? Em que momento foi isso? Por que isso? É muito difícil a gente anunciar ou chegar a qualquer conclusão sem ter essa base de dados consistente.
P.- Em relação ao Bolsa Família, uma das questões é se o benefício deveria ter um reajuste automático pela inflação. Outra seria acabar com a possibilidade de fila de espera. Esses pontos são importantes?
ML- Não vejo como excludentes. Uma coisa é ter um programa de transferência de renda que tenha um critério, como sempre tiveram todos os programas de transferência de renda até aqui, de não serem universais. Outra coisa é assegurar correção pela inflação, para que você garanta poder de compra, porque é esse o objetivo, que as famílias recebam recurso minimamente suficiente, e sempre estimulando outras iniciativas.
A visão é sempre associar a transferência de renda a outros mecanismos de desenvolvimento local, e por isso mesmo não tem a necessidade de ter fila. Se está no critério, isso nunca teve problema. A gente sempre foi atualizando o número de famílias elegíveis para receber o Bolsa Família com o Orçamento. Claro, quando você tem um preceito constitucional, você tem mais força, você tem a força política e jurídica.
P.- Associar as iniciativas seria a porta de saída? Isso sempre foi elencado por especialistas como um ponto a ser aprimorado. Como a senhora vê a questão?
ML- São dois aspectos aí. Primeiro eu não concordo com esse conceito de porta de saída. Acho que as portas de entrada precisam ser asseguradas, e todas as famílias brasileiras têm que ter o espaço, a oportunidade, a estrutura, o asseguramento dos seus direitos. A porta de saída é uma tutela, parece que é um incômodo, que o próprio governo tem que se livrar das famílias atendidas.
A outra coisa é a gente buscar, obviamente, o protagonismo, a participação, a autonomia, maior acesso e integração das políticas públicas. Isso sim. Quanto mais a gente investir, convencer, adotar essa perspectiva de intersetorialidade, melhor.
P.- No sentido de dar condições de elas buscarem autonomia?
ML- Exatamente, exatamente. Continua sendo função e tarefa do Estado, do poder público, criar, estimular, facilitar, favorecer que as famílias tenham acesso à educação, à qualificação, a iniciativas de construção de alternativas de renda, de inclusão produtiva, da economia solidária, de tantas iniciativas que são possíveis.
Mas não basta que seja só o governo federal, aí entram os governos estaduais e também os municípios. Por isso que é inadmissível que o governo federal tente fazer as coisas sem a participação dos estados e municípios. E eu não tenho dúvida que esse desmonte das políticas públicas tem tudo a ver com isso, com essa ruptura do pacto federativo.
P.- O Ministério do Desenvolvimento Social será recriado?
ML- Provavelmente não fica como está, porque o Ministério da Cidadania acabou sendo uma máquina muito difusa. Eu pessoalmente não defendo que permaneça assim.
RAIO-X
Márcia Lopes, 65
Natural de Londrina, é assistente social e professora. Formada em serviço social pela Universidade Estadual de Londrina, possui mestrado na mesma área pela PUC-SP. Já foi vereadora e secretária municipal de Assistência Social no município de Londrina. Ocupou diferentes cargos no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo Lula, chegando ao posto máximo de ministra em 2010.
Fonte: Redação Bonde