Medicina e literatura sempre estiveram entrelaçadas. Claro que a arte de narrar, como arte, penetra todas as atividades humanas. Pensando assim, todo ofício pode ser visto sob uma ótica literária. Mas a medicina, pela natureza do trabalho, vê a vida de um posto privilegiado. Talvez, com a fragilidade que o adoecimento traz, as pessoas passem a se mostrem sem máscaras ou defesas. Nesse sentido, o cuidado médico pode funcionar como um farol capaz de iluminar áreas escondidas de nós mesmos. Como a literatura.
Na história literária são inúmeros os autores médicos, que constroem romances, contos, poesia inspirados na relação delicada entre doença e cura, entre o universo da dor e do alívio, da desesperança e da esperança. Textos comoventes onde vida, agonia e morte tornam-se uma coisa só.
Há uma cena em Ana Karenina, talvez o maior de todos os romances jamais escritos, em que Ana, a adúltera, entre a vida e a morte, pelo quadro septicêmico (brilhantemente descrito por Tolstoi) pede para ver Karienin, o marido abandonado. Ela queria, num último gesto, pedir perdão e morrer em paz. Mas, ao ver a mão estendida dele, mesmo agonizante, foi tomada por repulsa incontida e o repele.
No romance “A cidadela,” A. J. Cronin, descreve a vida de um jovem médico, doutor Manson. Ele exerce seu trabalho em meio ao horror da revolução industrial inglesa no fim do século XIX. É comovente dedicação aos desvalidos e um chamamento à ética. Suas histórias são quase um grito de apelo à solidariedade, diante da tragédia dos trabalhadores atirados à miséria, numa escala pouco vista até então.
Entre tantos, vale ler um romancista russo, Mikhail Bulgákov, que descreve no seu livro “Anotações de um jovem médico” as dificuldades de início de carreira. Seu primeiro trabalho é numa aldeiazinha perdida no interior da Rússia do início do século XX. Bulgákov, com a maestria de um grande romancista (sua obra prima “O mestre e a Margarida” seria publicada décadas depois), transforma o cotidiano do médico em contos deliciosos. Imagine um lugar ermo, sem recursos mínimos, num frio congelante, sob nevascas.
Pois é nesse lugar que o personagem inicia seus trabalhos. E as angústias e medos aparecem logo no primeiro atendimento quando tem que enfrentar um parto complicado. Ele, que se orgulhava das boas notas nos tempos de estudante, cai na realidade de que na prática a teoria é outra. Sob o olhar escrutinador da enfermagem, que a todo momento faz comparações entre ele e o médico que o antecedeu, ele tem que mostrar serviço e mais, esconder a insegurança. Mostrar-se como quem não é.
O suor frio, o coração em atropelo, as idas furtivas ao quarto para ler nos manuais sobre o que fazer. Situações que vão mostrando o sofrimento de alguém vivendo seu rito de passagem, dos verdes anos à maturidade. Outros contos descrevem as situações engraçadas em que ele tenta mostrar aos camponeses, uma gente para a qual ninguém olha ou cuida, as possibilidades de cura. Trava um combate cotidiano contra a ignorância de um país rural e atrasado. Um paciente que volta se queixando que os emplastros prescritos não tiraram sua dor nas costas. Ao verificar como o homem usava o emplastro viu que ele o colocara sobre o casaco e não na pele!
E, talvez, o mais crítico de todos os contos venha a ser “O alienista” do nosso Machado de Assis. Simão Bacamarte, o psiquiatra rigoroso, que vê, em todos os seres humanos, traços de loucura, passíveis de internação e tratamento. Que por fim atinge a ele também. Numa metáfora maravilhosa sobre a loucura que muitas vezes é a própria vida.
Texto: Dr. Marco Antônio Fabiani, cardiologista