É o segundo atentado contra Avá-Guaranis de Guaíra em menos de um mês; vítimas precisam passar por cirurgia
Quatro indígenas Avá-Guaranis da Tekohá Yhovy foram atingidos por disparos de arma de fogo na noite de quarta-feira (10), em Guaíra, no Oeste do Paraná, enquanto faziam os rezos da comunidade. Desses, três foram encaminhados ao hospital de Toledo e precisam passar por cirurgia – um deles é o líder espiritual (xamoi). Foi o segundo ataque armado em menos de um mês na região onde os indígenas estão realizando a retomada do território.
Segundo o cacique Ilson Soares, a comunidade se dirigia a uma área em comum para realizar o ritual noturno. Nessas horas, os indígenas preparam e fumam seus cachimbos com rezas pela proteção deles e do território.
Como estava escuro, acenderam uma fogueira e sequer notaram a presença de algum não indígena na região. O líder espiritual estava em pé. A esposa de Ilson, que a reportagem irá identificar como V.M., aproximou-se do altar com seu cachimbo e abaixou-se para pegar o yvyra nhã’e mirim, como é chamado uma vasilha de água com casca de cedro. Nesse momento, o rezo foi quebrado com o barulho de disparo de arma de fogo.
“Logo os atingidos caíram – o líder espiritual e V.M. Um outro, que estava sentado, O.M, foi atingido no rosto, bem perto do olho, e um cachorro também. Em um momento de tensão, alguns tentaram socorrer os feridos, outros tentaram se proteger e outros saíram na busca do atirador, mas acabaram perdendo ele [atirador] de vista”, narra o cacique.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) foi acionada para que pudesse chamar a Polícia Federal. O carro da saúde indígena também foi contatado para levar os feridos até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). A UPA transferiu os feridos para o pronto socorro de Toledo.
V.M teve nove ferimentos na parte de trás da coxa e panturrilha. O xamoi teve dois ferimentos no joelho. Já O.M teve um ferimento do lado do olho esquerdo. De acordo com o cacique, que visitou as vítimas na tarde de quinta-feira (11), nenhum corre risco de morte.
Irmã de V.M., Paulina Martines relata momentos de tensão na noite de quarta-feira. Segundo ela, essas tocaias já vinham acontecendo na comunidade, mas grupos indígenas em rondas sempre descobriam e conseguiam retirar os não indígenas. Ela culpa o Estado brasileiro, a hidrelétrica de Itaipu e a ausência das forças de segurança pelo crime cometido contra os povos originários. “Foi uma falta de atenção, foi uma omissão por parte das autoridades, dos governos, que não garantiram a proteção para nós”, afirmou.
De acordo com a indígena, todas as noites havia ronda policial com drone na comunidade, mas na noite do atentado não teve. Após o ocorrido, ela disse que duas viaturas da Polícia Federal foram até a área da retomada.
“Se tivessem garantido proteção para nós, ontem [dia 10], e desde o dia que estamos aqui, que faz 15 dias, nenhum de nós sairia ferido. Nenhuma mulher estaria sofrendo de dor dentro de um hospital e, hoje [11], amanhecemos e não tivemos sossego. Porque tem os não indígenas rodeando a retomada, mostrando armas. Eles deixam a arma visível mesmo, não estão escondendo. Erguem a camisa e mostram que estão armados. Essas ameaças estão continuando até agora e nós estamos pedindo socorro”, frisou.
As forças armadas, no entanto, já haviam sido notificadas para prestar apoio à comunidade.
Ameaças recorrentes
No dia 21 de dezembro de 2023, os Avá-Guarani começaram as ações de retomada nas aldeias Y’hovy e Yvyju Avary. As áreas não possuem território demarcado e são remanescentes dos indígenas que foram expulsos da área que hoje dá espaço para o lago da Itaipu – de onde foram expulsos e sofreram remoções forçadas. Sem território e sem apoio, eles ocuparam a região do Oeste do Paraná em 17 tekohas e, agora, essas duas comunidades iniciaram um processo de expansão.
Logo após o início dessas retomadas, as comunidades passaram a sofrer graves ameaças e agressões por parte de grupos de não indígenas.
Nos dias 23 e 24 de dezembro do ano passado, as aldeias Y’hovy e Yvyju Avary foram atacadas com emprego de milícia rural privada. De acordo com o cacique Ilson, pelo menos 100 pessoas queimaram os barracos da comunidade e soltaram rojões. Eles também dispararam com arma de fogo, mas, felizmente, não acertaram ninguém.
“A polícia militar do batalhão de fronteira estava prestando apoio pra eles”, denuncia o cacique. “Já no dia 25, atacaram outra aldeia, que fica a uns 15 km daqui, e foi a mesma coisa. Aterraram os barracos com duas carregadeiras e mataram um cachorro e aterraram também. Soltaram muitos rojões e, depois de duas horas, a Polícia Federal veio e eles foram embora”, conta.
Na ocasião, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) realizou interlocuções com as lideranças indígenas, por meio da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), e gestões junto à Polícia Federal.
Três dias depois, em 27 de dezembro, o MPI solicitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a atuação da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) na área. Apesar de já ter sido solicitada, foi só após o ataque do dia 10 de janeiro que a medida foi autorizada para garantir a segurança dos indígenas.
“Nós todos estamos decididos que não vamos recuar”, enfatizou Paulina. “Vamos enfrentar, sim. Porque desde sempre a gente vem sofrendo com essa falta do território. Sempre fomos intimidados e sempre entregamos medo. Nunca tivemos coragem de enfrentar esse sistema doentio que acha que pode dominar, que acha que o dinheiro que dá a vida, que o dinheiro que defende a vida. E nós estamos defendo a natureza, os animais e a mãe terra, que está pedindo socorro. Se for preciso tombar, morrer para proteger a nossa mãe terra, a gente vai tombar. Mas quando tomba 50, 60 adultos guaranis, sempre restarão crianças que ainda erguerão essa bandeira de luta pela justiça. Porque estamos lutando pela Justiça. Por tudo o que o Estado brasileiro causou ao nosso povo”, complementou.
Respostas oficiais
Procurada, a Polícia Federal no Paraná disse que está ciente da situação, acompanha o caso e vai adotar as medidas cabíveis para manutenção da segurança na região. Porém, não especificou quais serão as medidas.
A reportagem também entrou em contato por e-mail com a Funai, que acusou o recebimento da demanda, mas não respondeu às questões da reportagem até a publicação. A Itaipu também foi procurada. O espaço segue aberto para manifestação de ambos os órgãos.
Fonte: Brasil de Fato