Para ter acesso à nota por meio do Cadastro do Produtor Rural, os agricultores da comunidade de Gramadinho precisam apresentar o título de reconhecimento do território quilombola. O processo de titulação foi iniciado há 19 anos e segue em andamento
Famílias agricultoras da comunidade quilombola de Gramadinho, localizada em Doutor Ulysses, município distante 135 quilômetros de Curitiba, enfrentam dificuldades para comercializar os alimentos que produzem de forma agroecológica. Impedidos de emitir a nota fiscal do produtor por fazerem parte de uma comunidade quilombola não titulada, os agricultores são privados da aquisição de direitos sociais como a aposentadoria e o auxílio-doença.
“Jogam a gente de um lado para o outro enquanto nossos produtos apodrecem na terra. Isso quando não vendemos bem baratinho, bem abaixo do valor para podermos ter um dinheiro. Para nós, quilombolas, nada se resolve com rapidez”, afirma a liderança Laura Rosa.
Sem acesso à nota do produtor, que é o documento que registra as operações de comercialização de mercadorias e serviços entre produtor e comprador, as agricultoras e agricultores da comunidade quilombola não conseguem vender os alimentos produzidos em compras governamentais e, como não são reconhecidos como trabalhadores da atividade agricultora, ficam à margem das políticas públicas destinadas à categoria.
“Sem essa nota não podemos comercializar nossos produtos que temos na comunidade. Lutamos todos estes anos por melhorias de vida, de sustentabilidade, mas todas as portas que batemos são fechadas para nós”, diz Laura.
Titulação de comunidades quilombolas
Para solicitar a inscrição no Cadastro do Produtor Rural (CAD/PRO) e ter acesso à nota fiscal do produtor, a Secretaria da Fazendo do Paraná (Sefaz-PR) exige que as comunidades quilombolas apresentem o título de reconhecimento do território tradicional.
O processo de titulação é iniciado assim que a comunidade interessada procura o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que produzirá o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território. Se aprovado, o Incra publica uma portaria de reconhecimento que declara os limites territoriais da comunidade quilombola. Depois acontece a regularização fundiária, quando o título de propriedade é concedido aos quilombolas.
Gramadinho faz parte do Quilombo do Varzeão, que está em processo de titulação desde 2004. Porém, como a comunidade de Gramadinho possui uma compreensão distinta à de Varzeão na gestão do território, foi dado início, em 2011, ao processo administrativo para titulação quilombola apenas de Gramadinho.
Atualmente, a comunidade aguarda a certificação da Fundação Cultural Palmares, primeira das seis etapas determinadas no processo de titulação. Porém, enquanto a certificação do Quilombo de Gramadinho não for concluída, a comunidade permanece vinculada ao processo de certificação e regularização fundiária do Quilombo de Varzeão, para efeitos de acesso às políticas públicas.
Políticas públicas
Na nota técnica nº 01/21 divulgada em março de 2021, o Centro de Apoio Operacional (Caop) das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos e o Caop das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária destacaram que a emissão da nota do produtor “não depende do título da posse ou da propriedade rural onde será exercida a atividade agrícola passível da incidência do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços]” e que a “inscrição no CAD/PRO é, pois, uma obrigação tributária acessória a que se sujeita todo e qualquer produtor rural, seja ele proprietário da terra ou não”.
Embora faça referência a trabalhadores rurais acampados e pré-assentados do Paraná, a nota orienta que as prefeituras incluam as famílias acampadas no CAD/PRO para reconhecimento da atividade agropecuária e para assegurar o direito de venderem formalmente os alimentos que produzem e de pagarem tributos ao município.
Para a organização Terra de Direitos, que assessora a comunidade de Gramadinho no processo de regularização fundiária, o governo do Paraná deveria reconhecer as especificidades das realidades do processo de titulação das comunidades quilombolas e adaptar as regras de concessão.
Comunidades quilombolas do Paraná
Segundo dados da Fundação Cultural Palmares, das 38 comunidades quilombolas do Paraná, 36 são certificadas. Essas comunidades, no entanto, ainda aguardam a titulação do território – sendo que a maioria dos processos teve início entre 2004 e 2007 (apenas dois começaram nos últimos 10 anos, um em 2013 e outro em 2018).
“Me parece que estão querendo penalizar as comunidades quilombolas. A culpa de tudo isso é da morosidade do INCRA em titular todos os territórios e do governo federal que cortou quase que totalmente o orçamento para as titulações. Isso impede a chegada das políticas públicas nestas comunidades, causando um impacto grande na renda destas famílias que precisam vender seus produtos para sustento dos seus familiares”, afirma o coordenador da Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná (Fecoqui), Alcione Ferreira da Silva.
“É um impedimento não só da emissão da nota, mas impede a comunidade de sobreviver. Como essas comunidades vão sobreviver sem renda e de onde tirar o sustento? Essa pergunta fica”, complementa.
Impacto fiscal e previdenciário
O impedimento da emissão da nota do produtor também impacta o acesso da comunidade de Gramadinho a direitos previdenciários, como a aposentadoria. Isso porque a Lei de Benefícios da Previdência Social determina que notas fiscais de entrega e saída de mercadorias e bloco de notas do produtor são comprovantes da atividade rural. Sem estes documentos, os quilombolas terão dificuldades em comprovar a atividade agrícola que desempenham.
Outro impacto é na arrecadação de tributos e ICMS das atividades rurais da comunidade. Sem poder emitir a nota, as famílias de Gramadinho não têm como contribuir com a receita tributária – recurso público essencial para o custeio de serviços e obras públicas.
“Ninguém ganha com o impedimento da emissão da nota do produtor para a comunidade quilombola de Gramadinho. As e os agricultores deixam de comercializar formalmente a produção de alimentos, o poder público deixa de receber os tributos pela emissão de notas e a sociedade de modo geral deixa de ganhar com o reinvestimento da receita em obras e políticas públicas, por exemplo”, diz a assessora jurídica da ONG Terra de Direitos.
Fonte: Jornal Plural