Em conversa no BDF Entrevista, ministra fala sobre dificuldades do acesso das mulheres ao mercado de trabalho
No 8 de Março, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional uma lei que estabelece igualdade salarial entre homens e mulheres que exerçam a mesma função no mercado de trabalho. Apesar de a determinação já estar prevista em diversos dispositivos, o Projeto de Lei estabelece novos parâmetros, principalmente de fiscalização, que podem ser decisivos para a implementação, de fato, desta medida.
A nova lei determina que o Ministério do Trabalho e o Ministério Público serão responsáveis por investigar e punir empresas que não cumprirem a legislação. No entanto, as dificuldades de implementação do projeto passam por um enfrentamento estrutural da sociedade patriarcal brasileira.
Para a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, “só uma legislação não dá conta do que é a questão da igualdade”. “Ela não passa por um decreto, ela passa também pela questão da ascensão das mulheres no mercado de trabalho. Passa também pela responsabilidade, única e exclusiva delas, hoje, com a questão do cuidado”, explica a ministra.
Convidada desta semana no BDF Entrevista, Cida Gonçalves, militante histórica do movimento feminista brasileiro, lembra que ainda é responsabilidade das mulheres, temas como o cuidado com as crianças, com os mais velhos e com a saúde dos demais parentes.
“É ela que ainda é responsável pelo cuidado com a pessoa doente. É ela que fica no hospital, ela que tem que levar. E a responsabilidade do cuidado, termina não permitindo que essa mulher também tenha ascensão no mundo do trabalho. São os homens que têm essa facilidade. Esse é um debate que nós vamos fazer”, explica.
Gonçalves explica que o grupo de trabalho interministerial será criado para enfrentar estes desafios. A ideia é debater quais “políticas públicas podem ser implementadas pelo governo federal, pelo governo estadual, pelos governos municipais, para dar conta de que a mulher tenha mais tempo dela, para cuidar dela, para ter a tranquilidade dela, repensar a vida”.
“Ao mesmo tempo, saber como e quando nós podemos estabelecer no país um processo de construção do debate sobre a divisão sexual de trabalho dentro de casa. É porque nós, as mulheres, fomos para a vida pública, mas os homens não vieram para a vida privada”.
Na conversa, a ministra das Mulheres ainda fala sobre outros temas, como o aborto. Segundo Gonçalves, não cabe ao governo federal propor novas legislações sobre o tema. Hoje, no Brasil, a medida é permitida em apenas três ocasiões: casos de estupro, risco de vida às mulheres e fetos diagnosticados com anencefalia.
“O papel do governo é executar o que já existe na legislação. Nós temos uma legislação de 1940. Eu gosto de lembrar isso porque as pessoas colocam como se fosse uma coisa que inventaram agora. A nós cabe: aprovou a legislação, vamos executar. Esse tem sido o nosso papel”.
“Nós temos uma sociedade conservadora. Eu acho muito difícil que o Brasil, nesse período de quatro anos – pode ser que daqui a quatro anos seja diferente – que nós tenhamos uma onda como teve na Argentina, é difícil”, completa a ministra.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: No 8 de março, o governo lançou um pacote de programas voltados à mulher. E logo no lançamento foi destacado o caráter transversal desses programas, ou seja, todos os ministérios participarão da implementação dessas políticas, de alguma forma. Como será a coordenação dessas políticas e qual o papel do seu ministério nestas implementações?
Cida Gonçalves: Na verdade, a coordenação é do Ministério das Mulheres, e para cada área nós teremos uma equipe técnica que vai estar acompanhando, efetivamente, o andamento, monitorando as ações. Mas eu mesmo estarei acompanhando diretamente, conversando com os ministros.
A nossa proposta é ter várias agendas conjuntas, eu e o ministro da pasta, seja o ministro da Educação, a ministra da Saúde, o das Cidades, o da Pesca, para que nós possamos, de fato, chegar nos territórios brasileiros com as ações.
No caso da violência contra as mulheres – e inclusive nestes programas, há também alguns determinados para tratar dessa questão – há políticas, ações importantes que vêm se desenvolvendo ao longo do tempo, mas os casos seguem em alta. Uma pesquisa revelou que mais de 50 mil mulheres sofreram algum tipo de violência, diariamente, no ano passado. Como ter ações efetivas para barrar essas violências, ministra?
Na verdade, a violência é um desafio e eu vou te dizer porquê. Primeiro, que quanto mais serviços nós fizermos, mais denúncias nós teremos. Então será muito difícil nós termos 47 Casas da Mulher Brasileira no país e diminuir o número de denúncias. Até a gente chegar no pico do atendimento, da capilaridade dos serviços de atendimento, a tendência é o aumento.
Não porque está aumentando única e exclusivamente, a violência contra as mulheres, porque isso também está, mas principalmente porque as mulheres estão fazendo a denúncia. Eu acho que isso é um primeiro olhar que nós temos que fazer.
O segundo é, de fato, o desafio de diminuir, de fazer com que a gente termine – o presidente Lula fala em erradicar o feminicídio e a violência contra as mulheres – mas a gente precisa começar a diminuir para que, de fato, nós possamos erradicar. Porque erradicar é só com a mudança de comportamento da sociedade brasileira e isso, nós sabemos, que é a longo prazo.
Mas, efetivamente, as ações de atendimento, de prevenção, que é fazer um debate com a sociedade brasileira sobre a questão da violência contra as mulheres, as relações, a questão do ódio que está colocada, porque a violência contra as mulheres é uma questão do ódio contra as mulheres, e também discutir a questão da impunidade são essenciais.
Porque nós só vamos dar conta, efetivamente, de diminuir quando tiver punição, quando a sociedade, a justiça, a segurança pública e todos os servidores públicos, entenderam que violência contra as mulheres no Brasil é crime e tem lei.
E a gente vive numa estrutura patriarcal, machista mesmo. Como enfrentar esse ódio dos homens contra as mulheres? Porque não me parece uma tarefa nem um pouco fácil essa conscientização, não é?
Não, não é, mas eu acredito que, aos poucos, nós vamos reestruturando, porque é uma questão, na minha avaliação, de reeducação. É reeducar a população brasileira para as novas relações sociais estabelecidas, que para nós é simplesmente a questão do respeito, que é a campanha do governo, que nós estamos no mês de março: esse é um governo que respeita as mulheres.
Nós queremos que esse seja um país que respeita as mulheres e nós vamos trabalhar para isso. Precisamos reeducar homens e mulheres, fazer um debate nas escolas, nas igrejas, nas comunidades, nas associações, em todos os espaços.
Falar sobre papéis, formas de relações, para que nós possamos erradicar o ódio que nós vivemos hoje, que está impregnado na sociedade e isso vai para dentro de casa. A intolerância vai para dentro de casa.
Esse é um desafio que está colocado e que eu não acho e nós, no Ministério, não acreditamos, que vai ser com campanha publicitária. É aquela campanha do dia a dia, dentro de casa, no ônibus, em todos os lugares, você insistir que, primeiro: violência contra as mulheres é crime e segundo; que respeito é bom e toda a população gosta.
E o governo federal também pode ser exemplo, não é? Com uma formatação onde há mulheres ministras, 11 no total, com ministérios importantes, com protagonismo, levam essa mensagem para a sociedade?
Sim, eu acredito. São 11 mulheres, em ministérios importantes e nós temos mais duas presidentes de bancos, a presidente do Banco do Brasil (Tarciana Medeiros) e a presidente da Caixa (Rita Serrano). Eu acho que isso é uma demonstração de que o governo, de fato, respeita e coloca as mulheres em posições estratégicas fundamentais para o Brasil.
E segundo, é também a forma que nós estabelecemos de relação interna do governo. A gente sempre diz que nós somos uma tropa de 13. Unidas, articuladas, uma apoiando a outra. Isso é a gente criar um ambiente de solidariedade entre as mulheres, para que elas possam exercer os cargos de poder com tranquilidade.
E com isso, é poder dizer para a sociedade que nós podemos vencer o ódio, nós podemos estar nos lugares que nós queremos e que nós temos capacidade e competência para isso. O governo vai demonstrando para a sociedade que é possível sim, você ter a construção das políticas, das relações diferenciadas, efetivamente.
E eu acho que, para mim, José Eduardo, o maior exemplo é o presidente Lula, a forma com que o presidente Lula respeita as mulheres brasileiras, como ele respeita esse Ministério, como ele fortalece esse Ministério. Ele diz o tempo todo: “Olha, é para ajudar o Ministério das Mulheres, gente ajuda a Cida, é para construir, para mudar. A prioridade das nossas políticas têm que ser as mulheres”. Porque ele sabe, efetivamente, do que está acontecendo. Ele está inquieto com a questão do número de feminicídio. Então, nós estamos com esse desafio.
O próprio presidente Lula falou durante a campanha sobre igualdade salarial entre homens e mulheres. Hoje, essa diferença passa dos 20%. É possível implementar essa política ainda nessa gestão? O que que falta para um projeto desse tipo avançar?
No 8 de março, o Lula assinou a mensagem. O Projeto de Lei que estabelece a igualdade salarial entre homens e mulheres para trabalho igual, está no Congresso Nacional. Só que a grande questão é a diferença desse projeto para os demais. Um: a fiscalização. Ele determina quem fiscaliza, que é o Ministério do Trabalho, o Ministério Público; Dois: ele cria multa para a empresa que não cumprir a legislação. Portanto, ele é muito mais consistente, da perspectiva da igualdade salarial do que a Constituição e a CLT hoje.
Ele traz esses elementos que são importantes para tratar a questão da igualdade. Mas nós sabemos, o governo sabe, a sociedade sabe, que só uma legislação não dá conta do que é a questão. Porque ela não passa por um decreto, ela passa também pela questão da ascensão das mulheres no mercado de trabalho.
Vai passar também pela responsabilidade, única e exclusiva delas, hoje, com a questão do cuidado. É ela que ainda é responsável pela questão da creche, pegar a criança na creche, na escola, é responsável pelo cuidado com a pessoa doente. É ela que fica no hospital, ela que tem que levar. E a responsabilidade do cuidado, termina não permitindo que essa mulher também tenha ascensão no mundo do trabalho. São os homens que têm essa facilidade. Esse é um debate que nós vamos fazer.
Nós já estamos criando um grupo de trabalho que é composto por diversos ministérios, coordenado pelo Ministério das Mulheres e o Ministério do Trabalho, para que nós possamos definir de um lado, quais são as políticas públicas que podem ser implementadas pelo governo federal, pelo governo estadual, pelos governos municipais, para dar conta de que a mulher tenha mais tempo dela, para cuidar dela, para ter a tranquilidade dela, repensar a vida.
E, ao mesmo tempo, como e quando nós podemos estabelecer no país um processo de construção do debate sobre a divisão sexual de trabalho dentro de casa. É porque nós, as mulheres, fomos para a vida pública, mas os homens não vieram para a vida privada.
Mas é importante dizer, para a questão do mercado de trabalho, que as mulheres hoje são aquelas que têm o maior índice de faculdade. São elas que têm a graduação, pós graduação, doutorado, porque na maioria das vezes, isso também é muito mais exigido das mulheres do que dos homens.
Por outro lado, nós temos um programa para pensar o que a gente chama de qualificação, porque muito mais do que ensinar e fazer a qualificação, nós primeiro precisamos incluir a mulher, dar inclusão digital. A maioria das mulheres não têm acesso à internet, mas também ela não sabe, ela precisa que alguém veja para ela como é que estão algumas situações, se precisa preencher um documento, se precisa fazer um currículo, ela não tem condições de fazer.
Nós precisamos fazer uma grande tarefa, que é incluir a mulher digitalmente. Porque estamos em um período em que a tecnologia está cada vez mais avançada e até para trabalhar em qualquer área, seja no trabalho doméstico, na loja, em qualquer área, a tecnologia é importante. Hoje você tem o microondas, vocês tem a Smart TV, você tem uma série de coisas que são digitais. São questões que estão postas na vida, no dia a dia da população brasileira.
O segundo é, de fato, preparar o mercado para receber essas mulheres, porque não é que elas não são qualificadas, é porque o critério do mercado é injusto com as mulheres. A primeira pergunta que eles fazem na hora da entrevista é: “Você é casada? Você tem filhos?”. Se você é casada, mas não tem filhos e está na idade reprodutiva, aí eles perguntam: “quando você quer ter filhos?”. Isso é injusto, é cruel, é isso que transforma a desigualdade. Essa pergunta não é feita para os homens.
Então nós precisamos rever a organização e a forma com que o mercado e o mundo do trabalho pensa as mulheres, e a forma com que elas se incluem. É nessa perspectiva que eu acho que nós vamos ter que trabalhar. Claro que nós vamos fazer a questão da qualificação, nós vamos trabalhar nessa área. Por isso, nós fizemos uma parceria com o Ministério da Educação, o “Mulheres 1000” está voltando para a gente trabalhar a qualificação.
Nós discutimos com o Ministério do Trabalho para ter acesso aos recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), o Sesc, o Senac, de que forma vão estar voltados para as mulheres no mundo do trabalho, mas já pensando que ela não vai aprender só a fazer de manicure, pedicure e cabeleireiro. Nós precisamos oferecer todos os tipos de cursos. Nós precisamos colocar as mulheres no mundo do trabalho, no mundo digital e com a inclusão que deve ser feita.
O tema do aborto rondou parte da campanha presidencial, mas foi logo barrado pelo conservadorismo dos nossos tempos mesmo e pelo que rondava também aquela campanha presidencial. É. possível pautar a questão do aborto nessa gestão, haja visto que o nosso Congresso é extremamente conservador – e, obviamente, um reflexo da sociedade brasileira – e por lá passariam projetos e legislações como essa?
O papel do governo é executar o que já existe na legislação. Nós temos uma legislação de 1940. Eu gosto de lembrar isso porque as pessoas colocam como se fosse uma coisa que inventaram agora. Não, é de 1940, que foram duas tipificações do aborto legal, no caso de estupro e risco de vida das das mulheres. E agora, nesses últimos tempos, que o STF trouxe a questão da anencefalia.
Não é papel do governo fazer um debate com o Congresso ou com a sociedade sobre o avanço ou não do debate sobre o aborto. A nós cabe: aprovou a legislação, nós vamos executar. Esse tem sido o nosso papel. Nós temos discutido, eu e a ministra Nísia [Trindade], no sentido de que precisamos garantir que as mulheres que são vítimas de estupro e que estão em risco de vida, ou em caso de anencefalia, tenham acesso ao serviço de aborto legal, tenham condições de serem atendidas.
Nós temos a objeção dos médicos e eles têm lá seus direitos individuais. Nós não vamos entrar nesse mérito, nós vamos respeitar. Agora, vamos cumprir a legislação e não vamos fazer o debate ampliar sobre esses processos, porque a nós cabe ampliar aquilo que já está na legislação Brasileira.
Sim, mas a América Latina, por exemplo, foi tomada por uma onda verde, de legalização do aborto, como no caso da Colômbia e da Argentina, que foram extremamente importantes e lutas que foram longuíssimas. A senhora não vê isso sendo pautado pela nossa sociedade?
Acho que o movimento de mulheres até pode demandar, agora, eu acho que, além do Congresso, nós temos uma sociedade conservadora. Acho muito difícil que o Brasil, nesse período de quatro anos – pode ser que daqui a quatro anos seja diferente – que nós tenhamos uma onda como teve na Argentina, é difícil. Você há de avaliar comigo que é difícil. Você não vai ter uma multidão de pessoas na rua com essa pauta.
Agora, nós temos pautas mais importantes, que vão levar uma multidão para as ruas – não que essa não seja. Mas, por exemplo, o feminicídio vai levar milhões de pessoas para as ruas, as mulheres não querem morrer. As pessoas não sabem, mas as mulheres não querem morrer. Nós vamos ter a questão dos estupros, olha o tanto que aumentou a violência sexual, principalmente com criança e adolescente nesse país.
E o pior é que quem está violentando é o pai, o irmão, o tio, o avô. A violência está dentro de casa, então nós temos essas pautas que vão mobilizar. O feminicídio está aí para nos mostrar. Nós temos levante feminista no Brasil inteiro, que todo dia quando uma mulher é morta, elas gritam, elas batem tambor. Então, assim, nós temos esse processo já colocado no Brasil sobre o que são as pautas que são estratégicas nesse momento.
Sobre a escolha pelo pagamento de benefícios sociais diretamente às mulheres, como o Bolsa Família. Essa não é uma novidade, já que os governos petistas, muitos anos atrás, já haviam determinado essa medida. Como isso influenciou, ao longo do tempo, como política pública na Independência financeira das mulheres? E qual é o seu papel hoje em dia?
É, essa discussão nós tivemos no governo anterior do presidente Lula e ela volta com força agora. Primeiro, é uma forma de empoderamento das mulheres, queria começar dizendo isso. Porque se criou aquela lenda de que é porque a mulher sabe gastar o dinheiro e o homem não. Não, nós queremos empoderar as mulheres, nós queremos que a mulher tenha o cartão, que a mulher vá no banco. São coisas que parecem pequenas, mas são fundamentais e estratégicas para você colocar a mulher no mundo, incluir efetivamente.
A segunda é a questão da habitação. A habitação é no nome das mulheres, então, se você vai numa inauguração do Minha Casa, Minha Vida, a maioria das pessoas que estão lá para receber a chave são as mulheres. Dentro de uma perspectiva de que, de fato, elas têm um empoderamento, inclusive para enfrentar a violência.
Nós moramos em um país em que 37% da população é mãe solo. Elas que são responsáveis pelos filhos. Nós temos um grande número de crianças que não tem o nome do pai registrado na certidão de nascimento, que está escrito pai desconhecido. Essa é a realidade do Brasil. É com essa realidade que nós precisamos trabalhar e o governo tem trabalhado nessa perspectiva.
Então, uma: empoderar as mulheres, garantir a elas esse direito; segundo, as mães solos terem garantia de que elas também terão acesso a todos os benefícios do governo; e terceiro, que vem dentro de uma perspectiva de que, de fato, você inclui as mulheres na economia local, tanto na economia estadual, quanto na economia nacional.
Acho que são fatores importantes e o nosso papel tem sido de ajudar a pensar, a discutir, a trabalhar algumas questões para que não seja apenas a entrega de um benefício, mas de que forma que, de fato, você faz com que essas mulheres tenham um processo de construção, de avanço.
Fonte: Brasil de Fato