Professores(as), funcionários(as) e estudantes ouvidos(as) pela APP-Sindicato relatam as consequências de violências lgbtóficas vivenciadas em escolas da rede estadual
Uma decisão tomada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, transformou o dia 17 de maio em Dia Internacional de Combate à LGBTQIA+fobia. Foi nesta data que a entidade retirou a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID). Passados mais de 34 anos deste marco da luta pela diversidade sexual, mesmo com avanços na conquista de direitos, a população LGBTQIA+ ainda sofre com a violência e o preconceito nos mais diversos espaços da sociedade brasileira, inclusive no ambiente escolar.
O professor de Língua Portuguesa, Jonathan Chasko da Silva, é uma das vítimas dessa realidade. Ele conta que já foi perseguido por um grupo de mães e pais que ficou revoltado com a realização de uma atividade pedagógica prevista na legislação e que tinha como tema o respeito entre as pessoas, a dignidade dos seres humanos e o amor.
O trabalho consistia em um levantamento de frases pensando em uma sociedade ideal, com condições para que todas as pessoas pudessem viver e conviver, e a confecção de uma bandeira com folhas sulfite em que cada aluno(a) poderia pintar do jeito que quisesse.
“A intenção era montar uma bandeira em que as cores não estivessem chapadas, planas, padronizadas, porque infelizmente, muitas das vezes é assim que a sociedade pinta as pessoas LGBTs, como todos iguais. Quando alguém é diferente, afeminado ou masculinizado, parece que não há permissão dessa pessoa existir. Então, a ideia era romper com esse estereótipo”, relata Silva.
Os(as) estudantes registraram a atividade e publicaram fotos nas redes sociais. Depois disso, um grupo de mães e pais foi até a escola e, segundo o professor, fez uma série de acusações falsas. As mentiras tinham narrativas como a de que o profissional incentivava os meninos a beijarem outros meninos e as meninas beijarem outras meninas, que ele dizia para as meninas virarem “sapatão” e para todo mundo virar travesti.
“Naquele momento eu fiquei bastante fragilizado. Não por questão da denúncia, mas pela falta de ética, de honestidade e dignidade daqueles pais e daquelas mães. Eles estavam na sala da pedagoga e eu, dentro da Sala dos Professores, escutava toda a infinidade de absurdos que eles estavam falando de mim, mas eles não permitiram que eu estivesse presente. Então isso doeu muito, foi uma violência muito grande”.
Silva afirma que as queixas foram registradas em ata na escola e também no Núcleo Regional de Educação. Professores(as), funcionários(as) e estudantes foram ouvidos(as) em uma investigação contra o docente, mas nenhuma das acusações foram provadas. Após tomar conhecimento de que poderiam ser processados(as) e condenados(as) por fazerem acusações sem provas, algumas mães e pais procuram o professor para dialogar e tentaram se justificar atribuindo as declarações falsas a boatos que teriam escutado de outras pessoas.
A atividade sobre amor e respeito que desagradou algumas pessoas foi desenvolvida no dia 17 de maio do ano passado, em uma escola da rede estadual localizada na zona rural de Cascavel, região oeste do Paraná. Além do respaldo da Constituição Federal e demais normas que dispõem sobre as diretrizes do sistema de educação brasileiro, o trabalho atendia a Lei Estadual 16.454/2010, que instituiu a data como Dia Estadual de Combate à Homofobia.
Embora Silva não tenha sofrido nenhuma penalidade administrativa, o mesmo não se pode falar da sua saúde física, emocional e financeira. Ele estima que gastou do próprio salário mais de R$ 6 mil em remédios e consultas com especialistas para cuidar dos sintomas provocados pela violência sofrida.
“Só eu sei o quanto eu gastei aí com terapia, com psicólogo, com remédio pra poder dormir e depois com remédio pra poder acordar. Eu emagreci quase 10 quilos. Então, essas pessoas, de forma irresponsável, pela ignorância delas, acabaram gerando tudo isso em mim. Essa conta ninguém paga. Essa é a conta que nós, LGBTs, pagamos para sobreviver nessa sociedade que constantemente quer a nossa aniquilação.
Não é um caso isolado
A violência contra o professor Jonathan está longe de ser um caso isolado. Em um formulário aberto pela APP-Sindicato no ano 2022, para receber denúncias de quem já sofreu ou presenciou situações de LGBTIfobia nas escolas da rede estadual do Paraná, foram inúmeros os relatos de assédio, discursos de ódio, perseguições, piadas preconceituosas, violações de direitos e até agressões.
“Sofri um discurso de ódio tanto de alunos quanto de professores e funcionários só por causa da minha orientação sexual. Uma das vezes que mais me marcou foi quando uma professora de onde trabalho disse que eu era um nojento só por gostar de homens”, relatou um funcionário de escola.
“Passei por discriminação por parte de superiores, perdendo oportunidades de crescimento e melhores possibilidades de jornada de trabalho e aumento salarial. Foi tão forte que ir ao trabalho se tornou um fardo, inclusive influenciando em minha saúde emocional, se tornando insuportável, até que pedi demissão. Hoje atuo em outra instituição, onde não vejo esse tipo de preconceito, mas agora evito inserir elementos da minha vida pessoal em redes sociais ou mesmo estar com minha companheira em público, por temor de sofrer tudo o que já vivenciei”, contou uma professora.
“Colegas, pedagogos e alunos ao longo da minha carreira sempre me faltaram com respeito. Infelizmente vivemos numa sociedade conservadora onde as pessoas muitas vezes nem percebem o preconceito e a discriminação, mas ele existe sim. Muitos professores preferem nem se assumir porque sabem que vão ter muito desgosto”, desabafou um professor.
“Me tacavam pedras na saída da escola e sempre procuravam arrumar briga comigo por eu ser mais “frágil”. Eu morria de medo. Até que um dia, após eu chegar chorando em casa, minha mãe foi na escola falar com a diretora. Os garotos pediram desculpas, mas não parou por aí. Fiquei muito tempo sofrendo essas agressões, tanto verbal quanto física. Eu estou em processo de muitos problemas ainda por conta disso”, contou um estudante.
“Um funcionário disse para os meninos trans usarem o banheiro para pessoas com deficiência física para “se esconder” e não deixar as outras pessoas desconfortáveis”, escreveu um jovem trans, em outro relato enviado por estudantes.
“Não é prioridade para o governo”
Para o professor e secretário executivo da Mulher Trabalhadora e dos Direitos LGBTI+ da APP-Sindicato, Clau Lopes, atitudes lgbtfóficas aumentaram nos últimos anos com a ação de grupos extremistas querendo impor à toda sociedade uma visão única do que pode ser considerado família, atacando valores como a pluralidade, a diversidade e os direitos humanos.
“Nos últimos dez anos, o conservadorismo religioso, o extremismo contrário às pautas dos direitos humanos, focaram nas escolas porque sabem que a escola é um dos primeiros lugares de socialização, tanto das crianças quanto de adolescentes e jovens, e que essa população passa boa parte do seu tempo nas escolas”, explica.
Secretária da Mulher Trabalhadora e dos Direitos LGBTI+ da APP-Sindicato, Taís Adams acrescenta que se faz urgente continuar avançando em políticas públicas, inclusive com cursos sobre questões ligadas à diversidade e identidade de gênero para os(as) educadores(as) que já atuam nas escolas e também nos currículos das graduações que vão formar os(as) futuros(as) professores(as).
“A APP-Sindicato sempre está cobrando ações voltadas aos direitos da população LGBTQIA+, ao respeito dos direitos humanos. Mas isso não é uma prioridade para a gestão do governador Ratinho Jr. (PSD). Uma prova disso é que não se vê nenhuma iniciativa concreta, nenhum incentivo neste sentido”, diz.
“Não é um lugar seguro para as pessoas LGBTs”
Quem já foi vítima de lgbtfobia aponta que investir na reeducação social é fundamental. O professor Jonathan Chasko da Silva, por exemplo, acredita que o desfecho do seu caso só não foi pior porque contou com o apoio dos(as) colegas educadores(as) da escola onde ocorreu a situação.
“A escola por si só não é um lugar seguro para as pessoas LGBTs. A escola se torna um lugar seguro se o corpo docente estiver preocupado e preparado com formação para atender a esse público, mas os cursos de licenciatura não formam para isso, as formações continuadas que o Estado propõe, não falam sobre isso, não preparam a gente para esse atendimento”, afirma.
“Então, se o professor não vai atrás desse aperfeiçoamento, na grande maioria das vezes a escola é a reprodutora de violências e estigmas, a perpetuadora de processos violentos e agressivos que relegam às minorias esse lugar de quase gente, quase pessoas, quase dente dotes de direitos”, complementou.
“A escola, infelizmente, ainda não é um espaço seguro para nós. Então, a gente precisa ficar alerta e atuante para superar essas situações e pensar em políticas educacionais mais contundentes para minimizar essas dores”, destaca Clau.