Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstra que, embora a letalidade policial tenha caído mais de 30% entre brancos, ocorrências contra negros aumentou 5% no mesmo período
O mito da democracia racial
“Confronto”. Este é apontado como justificativa mais recorrente para mortes decorrentes de violência policial no Brasil. Dados do Anuário de Segurança Pública, publicizados em 2022, indicam que mais de 6 mil pessoas foram mortas por policiais civis e militares no último ano, representando, em média, 17 mortes causadas por dia. O dado, apesar de alarmante, indica queda de 4,5% em relação ao índice registrado em 2020. O número de policiais assassinados também regrediu 17%, somando 183 casos em 2021 ante a 221 em 2020.
No entanto, a queda da letalidade policial no país não é uma realidade para toda população, isto porque, entre pessoas negras a ocorrência de mortes, decorrentes de ação policial, cresceu 5,8%. Entre 2020 e 2021, negros e pardos representaram 84,1% das vítimas de intervenções policiais. Como compreender tamanha desigualdade e modificá-la?
Cláudio Galdino, geógrafo, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), docente em escolas públicas e privadas, chama atenção para o entendimento compartilhado por parte da população de que existe na sociedade brasileira uma “igualdade racial”, principalmente, quando comparado a outras localidades em que existiram políticas legais segregacionistas, a exemplo do [Apartheid] Estados Unidos.
A ideia da “democracia racial” baseia-se no pressuposto de que não existe racismo ou discriminação racial no Brasil. Esta visão, por sua vez, está assentada na romantização dos processos de colonização e miscigenação que são considerados pacíficos, ou seja, de acordo com esta compreensão hegemônica grupos colonizados (como negros, indígenas) tinham as mesmas condições de enfrentamento do que colonizadores. A partir de uma perspectiva benevolente e tutelar, aos homens brancos era atribuída a missão civilizatória de domesticar estes demais grupos.
Contudo, a historiografia demonstra que, o que ocorreu, de fato, foram diversas violências físicas e simbólicas cometidas contra povos originários, indígenas, negros, mulheres, estas últimas, por exemplo, foram estupradas por homens brancos, sobretudo, europeus, como apontou Lélia Gonzalez. A troca de terras por espelhos não foi por deslumbramento, mas por coerção.
Florestan Fernandes, questiona a ideia de democracia racial, chamando-a de “mito” e, então, evidencia que esta percepção só contribuiu para disseminar na sociedade brasileira, um racismo “mascarado”, naturalizado nas relações sociais cotidianas, entretanto, facilmente desconstruído ao olharmos para os índices de violência que acometem negros e negras.
A margem é centro
Galdino adverte que o processo histórico marcado pela escravização no qual a população africana foi forçosamente trazida para o Brasil trouxe uma série de consequências, que podem ser visualizadas ao considerarmos as relações entre localização e racismo. Ele aponta que a violência institucional constitui um ciclo, uma vez que, a falta de políticas públicas leva e ao mesmo tempo mantém a população negra em regiões que apresentam maiores índices de criminalidade e pobreza. Isto porque, o custo de vidas nestas regiões tende a ser mais baixo e negros e negras apresentam menores rendimentos, o que tem entre suas razões, o fato de serem evadidos das escolas e do mercado de trabalho.
Estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) identificou que, em 2018, somente 60% dos jovens negros concluíram o ensino médio no Brasil, a taxa sobe para 76% ao olharmos para jovens brancos. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que, em 2020, brancos ganharam, em média, 73,3% mais do que pardos e negros. Enquanto a população ocupada branca tinha um rendimento médio real de R$ 3.056, a população parda e negra ganhava R$ 1.764.
“Quando nós analisamos as relações entre território e desigualdades étnico-raciais nós percebemos que a população negra, em sua maioria, está localizada nas regiões que margeiam os grandes centros urbanos. E isso não é uma característica só de Londrina, nós vemos isso em outras cidades também. Mas em Londrina, especificamente, a população negra está concentrada em regiões mais carentes, em regiões onde os indicadores de violência são maiores não porque as pessoas negras estão nestes locais, mas porque o Estado não se faz presente, as políticas públicas não são efetivas e são estes fatores que também os levaram a estar nestas áreas”.
De acordo com os estudos realizados pelo docente, bairros de Londrina, a exemplo do União da Vitória, Avelino Vieira, João Turquino, Maracanã, Leonor, Marabá, Sabará, Santa Fé, são regiões que concentram grande parte da população negra. Porém, se os serviços públicos de saúde, educação, segurança são mais difíceis de chegar nestes espaços, a violência é uma realidade que nunca dá trégua. “São verdadeiros locais de extermínio, onde o jovem negro é costumeiramente vítima de violência policial, que na maioria das vezes leva à morte”, analisa Galdino.
Levantamento do Ministério Público do Paraná, divulgado em abril deste ano, aponta que em 2021, ocorreram 417 mortes decorrentes de confrontos com policiais civis, militares e guardas municipais no estado, aumento de quase 10% em comparação ao ano de 2020, quando ocorreram 380 mortes. Dos óbitos, a maioria das vítimas tinham até 29 anos (62,9%) e eram negras e pardas (53,3%). Londrina é o segundo município com mais mortes em supostos confrontos.
Mobilizações nas ruas e redes sociais
Na última semana, uma página no Instagram nomeada @justicaporalmas foi criada por familiares e amigos de vítimas mortas em “confrontos forjados” em Londrina e região. A finalidade da iniciativa é reunir mais pessoas que tenham perdido entes na mesma situação para que juntas possam pressionar o Ministério Público a investigar e solucionar os casos. Mesmo estando há poucos dias no ar, a conta já possui mais de 1.500 seguidores.
Galdino considera que a utilização das redes sociais contribui para o combate ao racismo, uma vez que possibilitam que denúncias de violências contra a população negra sejam amplamente disseminadas, chegando ao conhecimento de mais pessoas. “As violências que acometem a população negra foram invisibilizadas ou negadas durante muito tempo por parte da mídia londrinense que hoje se vê obrigada a publicizar esses dados. Isso é importante até para que nós possamos desenvolver algumas discussões como: porque em Londrina, e em todo território nacional, o negro ainda é maior vítima de homicídios e porque grande parte da sociedade não se indigna com esta violência? ”, ele questiona.
De acordo com Galdino, em Londrina, uma pessoa negra possui 70% mais chances de ser vítima de violência do que uma pessoa branca, embora, a população negra represente em torno de 26% dos habilitantes. Ele destaca que a maioria das vidas perdidas é de jovens negros, cujas mortes são resultantes de violência policial, predominante associada à criminalidade e, portanto, apresentando a ideia de “confrontos” como principal justificativa.
“Em sua maioria, estas mortes seguem sempre o mesmo roteiro. Essa ‘coincidência’ pode ser entendida como extermínio mesmo e você percebe que não há uma tentativa efetiva de mudar esse quadro por parte do Estado. O verdadeiro genocídio da população negra continua e você não vê políticas públicas que venham minimizar os indicadores, ao contrário, isso é tido como aceitável, vivemos um continuísmo do processo de escravização”, afirma.
Para Galdino, discursos que fogem aos oficiais, como quando há testemunhas que presenciaram os casos e indicam que não aconteceram “confrontos”, mas sim “execuções” tendem a ser deslegitimados. Segundo ele, isto ocorre porque ainda há uma validação de tais mortes. “Vemos com muita frequência, falas que expressam que a pessoa que teve a vida ceifada, ela mereceu aquilo e, principalmente, esse merecimento se dá pela cor da pele”.
Para o pesquisador, a naturalização das violências contra a população negra pela maioria da população brasileira é reflexo do racismo, esta opressão ainda é responsável por levar negros a serem vistos sempre como “suspeitos”. Galdino pontua que a falta de sensibilização da sociedade é extremamente grave.
“Muitas vezes, não conseguem ver que a dor daquela mãe, daquele pai e amigos que moram em regiões mais afastadas e carentes é a mesma de pessoas que moram em áreas mais nobres. Não se trata de defender a violência generalizada, mas compreender que todos, independentemente de pertencimento étnico-racial, possuem papel preponderante no combate ao racismo”, ele convoca.