No último ano, foram 75 casos de feminicídio no Paraná ante a 73 ocorrências em 2020. As tentativas de feminicídio não tiveram oscilação significativa: foram 60 em 2020 e 61 em 2021, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
A importância de nomear as violências
Em 1976, perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, realizado na Bélgica, a socióloga sul-africana Diana Russel usou pela primeira vez o termo “feminicídio” para caracterizar o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres. Para a autora, o crime perpetrado por homens refere-se, portanto, a morte não acidental de mulheres. Na maioria das vezes, constitui o estágio mais grave de um ciclo de abusos ocasionados, premeditados e naturalizados sob uma organização social sexista, estruturada por múltiplas desigualdades e violências de gênero.
Mas, foram precisas quase quatro décadas e milhares de vidas (de mulheres) perdidas para que o crime alcançasse maior reconhecimento no Brasil. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2021, ocorreram 1.354 casos no país, pequena redução face a 2020, quando foram registrados 1.341 assassinatos. A maioria das vítimas (62%) eram mulheres negras e 37,5% brancas. Porém, estudiosos das questões de gênero, indicam que, provavelmente há subnotificação dos dados, visto que, além das dificuldades de realizar as denúncias, não há homogeneidade na coleta e tratamento dos dados entre os estados.
Sancionada em 2015, a Lei 13.104, é responsável por reconhecer o crime de feminicídio, alterando o Código Penal de 1940, e estabelecendo o atentado como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Tipifica, ainda, o crime de feminicídio como hediondo, estando atrelado a situações de violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
No Paraná, desde 2019, 22 de julho é o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. Instituído pela Lei 19.873, o marco almeja dar mais visibilidade e conscientizar sobre ao assunto, ou seja, acerca das violências motivadas pelo machismo e misoginia (aversão às mulheres), através de debates promovidos por movimentos sociais, coletivos, também por meio de ações organizadas pelos poderes públicos em seus diferentes níveis (local, estadual, nacional) e esferas (Legislativo, Judiciário).
A data foi estabelecida em memória a Tatiane Spitzner, morta, aos 29 anos, pelo marido Luís Felipe Manvailer, em 2018. O crime ocorreu no município de Guarapuava, região central do estado. Laudo da necropsia, emitido pelo Instituto Médico Legal (IML), confirmou que a morte da mulher foi por asfixia mecânica, decorrente de esganadura e com sinais de crueldade. Com o transcorrer das investigações, ficou notório que o relacionamento era marcado por diversas violências físicas e psicológicas. À polícia, o homem disse que era inocente e que a companheira havia cometido suicídio.
Para Isabeau Lobo, advogada criminalista, mestranda em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), pesquisadora sobre as questões de gênero, o Dia Estadual de Combate ao Feminicídio deveria ser “feriado” a fim de que as pessoas pudessem melhor compreender o que significa a vida de uma mulher retirada pela violência.
“Não é qualquer violência, é pela violência machista, o patriarcado, o peso que isso representa. Eu acredito que quando atribuímos um nome a uma data, ela cria no imaginário social, uma importância, para que não nos esqueçamos nunca das vítimas que se foram”. Além disso, ela destaca o papel da data no respeito a memória das vítimas, familiares e para que toda a sociedade “lembre que a vida da mulher tem valor sim e nós, enquanto mulheres, devemos ser respeitadas”, avalia.
No último ano, foram contabilizados 75 casos de feminicídio no Paraná ante a 73 ocorrências em 2020. As tentativas de feminicídio não tiveram oscilação significativa: foram 60 em 2020 e 61 em 2021, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Entre janeiro e março deste ano, foram notificados 19 crimes no estado.
De Ângela Diniz a Cidnéia Mariano
Inúmeros desafios se fazem presentes para que a legislação avance e o olhar estereotipado sobre as vítimas seja desconstruído. Não à toa, especialistas que atuam contra as violências de gênero, apontam que frequentemente a vítima é revitimizada, vide os casos emblemáticos de Ângela Diniz em 1976 e Mariana Ferrer em 2018, embora sejam mulheres brancas – perfil que não é o mais recorrente entre as vítimas – ambas sofreram machismo durante os julgamentos de seus casos, ocasiões em que foram levantadas a justificativa da “legítima defesa da honra”.
Quando se trata do tratamento e resolução de crimes desta natureza, Lobo, conta que durante sua atuação profissional, bem como no período em que integrou o Néias – Observatório de Feminicídios (o coletivo surge em homenagem a Cidnéia Mariano, vítima de feminicídio em Londrina) consegue observar mudanças significativas na postura do poder Judiciário, principalmente, do Tribunal do Júri. “No que atine aos julgamentos envolvendo feminicídios, temos visto uma maior celeridade nas respostas e na valorização da vida destas mulheres que foram ameaçadas quando não ceifadas vem acontecendo bastante”, afirma.
Porém, olhando, especificamente para Londrina, ela ressalta que ainda há falhas como a necessidade de um letramento mais aprofundado sobre as relações de gênero por parte dos operadores da Justiça contribuindo, assim, para que a mulher não seja considerada apenas “prova”, esvaziada de sua história e, portanto, não compreendida como sujeito do processo. “Elas podem ter falecido em decorrência da violência feminicida da qual foram vítimas, mas elas representam ainda uma mãe, uma mulher, uma filha, alguém na sociedade. Pedir respeito a memória destas mulheres ainda é necessário no Judiciário municipal”.
Para Lobo, os meios de comunicação vêm aumentando a cobertura dos crimes de violência contra a mulher na cidade. Segundo ela, os veículos são grandes “aliados” e é fundamental que a imprensa dê atenção para o problema a fim de que as mulheres saibam mais sobre os caminhos para denúncia e sintam que não estão sozinhas.
Segundo relatório do Néias, divulgado no início deste ano, dos 11 julgamentos de feminicídio tentados e consumados em Londrina ao longo de 2021, oito tiveram como principal motivação a decisão da mulher em pôr fim ao relacionamento e apenas três vítimas contavam com MPU (Medida Protetiva de Urgência) quando a violência aconteceu.
Saiba mais sobre ato público contra o feminicídio realizado em Londrina nesta sexta-feira (22) aqui.