Povos Avá Guarani vêm sofrendo ataques nos municípios de Guaíra e Terra Roxa desde o início de julho; Governo Federal anuncia Grupo de Trabalho sobre o conflito
“Nós estamos resistindo, as mulheres indígenas estão resistindo e essa é a nossa luta. Vamos manter firmes. (…) Nós não queremos o Brasil inteiro, apesar de que o Brasil inteiro é nosso, só estamos retomando o que era dos nossos ancestrais. (…) Itaipu colocou os territórios Avá Guarani debaixo d’água; Itaupu tem uma dívida imensa com os povos Avá Guarani”.
As declarações são da liderança indígena Vilma Vera, que representou os povos Avá Guarani nesta segunda-feira (22), durante a apresentação do relatório Violência contra os Povos Indígenas – dados de 2023, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Brasília. Os Avá Guarani vêm sendo atacados ao menos desde o início de julho por ruralistas, no Oeste do Paraná, após retomada de territórios.
De acordo com o portal Parágrafo 2, que faz a cobertura dos conflitos, no início do mês os guaranis começaram um movimento de expansão das aldeias e também de retomada de áreas dentro da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, que foi delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2018. A reserva fica nos municípios de Guaíra, Terra Roxa e Altônia e vários trechos dela estão hoje em fazendas da região. São 165 os produtores rurais dos municípios de Guaíra e Terra Roxa que têm trechos de terra na Reserva Indígena. As propriedades somam cerca de 24 mil hectares. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), a delimitação da TI foi contestada pelos fazendeiros, ainda em 2018, e o processo demarcatório está suspenso.
Também nesta segunda, o MPI anunciou a criação de um Grupo de Trabalho para buscar diálogo e conciliação na região, composto por Governo do Estado do Paraná, prefeituras de Terra Roxa e Guaíra, Polícia Militar, Polícia Federal, Força Nacional, MPI, Ministério Público Federal (MPF), Funai, representantes dos povos indígenas locais e representantes dos ruralistas, indicados pelo Sindicato Rural de Terra Roxa.
O MPI creditou à aprovação do Marco Temporal o avanço da violência contra povos indígenas. “O Ministério dos Povos Indígenas enfatiza que a instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas.” (leia a nota completa aqui)
‘Se tiver que morrer, vamos morrer’
Em sua fala durante o evento do Cimi, Vilma Vera disse que pedia “socorro” e denunciou discurso de ódio promovido por lideranças locais contra os povos indígenas. Para ela, a violência só terá fim com a demarcação das terras. Assista a um trecho da fala abaixo:
História dos povos
Em maio de 2023, a indígena Ana Lúcia Ivoty-Guarani, estudante de psicologia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), publicou na Rede Lume o texto Guarani: luta ancestral pela terra indígena e o bem viver. Ana Lúcia pertence ao povo Guarani, ao Tekoha Tenondé Nhepyrû, da comunidade Tekoha Guasu Guavira, localizada no município de Guaíra. No texto ela relembrou a história de usurpação do território indígena na região, o impacto da construção da usina de Itaipu e as consequências para a vida e a saúde dos Avá Guarani.
“Os Avá-Guarani são povos indígenas que habitam a região Oeste do Paraná desde muito antes da chegada dos europeus. Viviam sem fronteira de território, não existia fronteira entre estados ou países. O território reivindicado por nós nessa região é composto por 17 aldeias nos municípios limítrofes de Guaíra e Terra Roxa, sendo nove em Guaíra e oito em Terra Roxa, onde vivem cerca de três mil indígenas Avá-Guarani. Temos parentes nos países vizinhos Paraguai e Argentina e no estado do Mato Grosso do Sul, assim como em outras aldeias dos Guarani no Paraná e demais estados brasileiros.
A retomada de território em Guaíra iniciou pelo Xamoi Claudio Barros e seus familiares em 1997. O nosso Xamoi resistiu a todas as violências, na esperança de um dia ter seu território demarcado e reconhecido. Porém, esse sonho foi interrompido em 2019, quando com 105 anos, ancestralizou. Mas o Xamoi deixou semente, que continua a sua luta pela demarcação de terra.
No ano de 2004, os Ava-Guarani avançaram na retomada dos seus territórios onde os seus antepassados nasceram e foram expulsos pelos exploradores de erva mate e, posteriormente, pela construção da hidrelétrica do Itaipu.
A nossa história em Guaíra começou a ser apagada quando os não-indígenas chegaram entre 1506 e 1514 e, também, pela companhia Matte Laranjeira, que escravizou nossos parentes, tirou de muito Guarani a própria vida e o seu bem viver. Em nome do progresso e na tentativa de nos matar, destruíram o lugar mais sagrado do Ava- Guarani: as Sete Quedas.
Sete Quedas eram um portal sagrado Guarani
Nas narrativas dos nossos mais velhos, as Sete Quedas eram um portal sagrado, que levava nosso espírito a nos conectar com o bem viver e Yvy marã´e’ỹ. A perda do local sagrado trouxe muito adoecimento para os Guarani, porque não é mais possível se conectar com o sagrado e o bem viver como antigamente. Mas ainda assim permanecemos vivos, pois enquanto as memórias estiverem vivas, as nossas histórias também permanecerão e continuarão vivas.
É por meio das memórias que retornamos para o lugar que sempre nos pertenceu, este que está vivo e sabe de onde vem, sabe da sua história. Os não-indígenas dizem que somos invasores de terra, gritam em voz alta, quando, na verdade, os invasores são eles mesmos. Gritam alto para convencer a si mesmos dessa afirmação.
Eu pergunto: é tão difícil compreender que o Brasil foi invadido e não descoberto? Que a Matte Laranjeira escravizou os Avá-Guarani e os expulsou dos seus territórios? Que a Itaipu, considerada progresso para o estado do Paraná, alagou as aldeias indígenas Guarani e destruiu lares da família indígena Guarani? Ou que o Estado omitiu a presença indígena para vender suas terras?”
O que diz o MPI
O Ministério dos Povos Indígenas afirma ter recebido os primeiros pedidos de apoio dos Avá Guarani no dia 5 de julho, após serem ameaçados por fazendeiros ao iniciarem dois processos de retomada de territórios no município de Terra Roxa.
“Na terça-feira (16), uma equipe do MPI chegou ao município de Guaíra para agir junto ao Ministério dos Direitos Humanos, Funai, Sesai, órgãos de segurança pública e do estado do Paraná. Na data, uma reunião foi realizada com a Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai, a Força Nacional e a PM do Paraná, responsável pela guarnição em Terra Roxa, município em que estão ocorrendo as retomadas, mais especificamente na Fazenda Brilhante.”
As duas retomadas realizadas pelos Avá Guarani foram visitadas pela equipe em missão, ainda na terça-feira, para uma conversa inicial com os indígenas. Pela manhã de quarta-feira (17), a equipe se deslocou a Terra Roxa para buscar diálogo com os ruralistas envolvidos no conflito na sede do Sindicato Rural do município.
Participaram da reunião no Sindicato, de acordo com o MPI, o prefeito de Terra Roxa e o vice-prefeito de Guaíra, assim como representantes da PM, da Polícia Federal, da Força Nacional, o secretário de segurança pública do Paraná, deputados, entre outras autoridades. A população do município esteve presente no encontro.
Novas retomadas
Na quinta-feira, a equipe do governo federal precisou agir em outra retomada no município de Guaíra. Com mediação, um novo confronto entre fazendeiros e indígenas foi evitado, afirma o MPI. No dia seguinte, uma reunião entre as partes foi realizada pela equipe e foi estabelecida uma mesa para que negociem com Itaipu, Conselho Nacional de Justiça e MPF.
“Na madrugada de quinta para sexta, mais duas retomadas tiveram início no Estado. Em função da movimentação, o MPI dialogou com o secretário de segurança e o efetivo estadual foi reforçado com contingente vindo de Curitiba. A Força Nacional também enviou reforço, que chegou na sexta-feira (19).”
Atualmente, a presença da Força Nacional foi reforçada e a portaria que autoriza sua presença tem validade até o início de agosto. O Ministério dos Povos Indígenas afirma que pedirá, ainda, a renovação da portaria para manter e ampliar o contingente no local ao menos por mais 90 dias.
Novas ameaças
O Portal Parágrafo 2 publicou, nesta segunda-feira, mensagens que mostram fazendeiros convocando ataques às retomadas e dizendo que se preciso for vão “passar por cima da polícia” para retirar os indígenas das terras. O portal teve acesso a dois vídeos que estariam circulando nestes grupos (assista aqui). Um deles tem imagens aéreas das retomadas e no outro uma mulher, não identificada, convoca agricultores de outros municípios para expulsar os indígenas.
“Pessoal de Mundo Novo e Eldorado, estamos aqui em Guaíra com três invasões de propriedade hoje. Uma aqui no Mirante da Eletrosul, bem próxima da rotatória, outra lá na estrada do Picadão e outra na Pedreira. A gente precisa de ajuda de vocês, de reforço… precisamos juntar gente aqui e arrancar esse povo hoje daqui”, diz a mulher enquanto grava uma das retomadas.
Durante o evento do Cimi, a liderança Avá Guarani Vilma Vera declarou ter ouvido do prefeito de uma das cidades que os indígenas não são bem-vindos, que “trazem doenças”, e devem ocupar territórios distantes das cidades.
Para o presidente do Cimi, Cardeal Leonardo Steiner, “O Congresso Nacional perdeu o horizonte da ética”, quando agiu à revelia do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o Marco Temporal, aprovando uma lei.
Lei acirrou violência, que segue avançando
O entendimento do relatório do Conselho Indigenista Missionário é de que o primeiro ano do governo Lula trouxe esperanças, com a mudança de posicionamento a respeito dos direitos dos povos indígenas e a histórica criação do Ministério. Porém, pouco avançou-se em demarcações (foram apenas 8 TIs ao longo do ano) e a configuração conservadora e reacionária do Congresso Nacional conseguiu pautar o debate, culminando na aprovação da Lei do Marco Temporal.
“Oito terras indígenas foram homologadas no primeiro ano do novo governo, um número aquém das expectativas, mesmo sendo maior que o dos últimos anos. Os parcos avanços nas demarcações refletiram-se na intensificação de conflitos, com diversos casos de intimidações, ameaças e ataques violentos contra indígenas, especialmente em estados como Bahia, Mato Grosso do Sul e Paraná.
A disposição do governo federal em explorar petróleo na foz do Amazonas, a priorização orçamentária ao agronegócio e o apoio a grandes projetos de infraestrutura e de exploração minerária em conflito com povos indígenas, como a ferrovia ‘Ferrogrão’ e as investidas de empresas estrangeiras sobre o território Mura, no Amazonas, também compuseram este cenário.”, relata o Cimi.
Acesse o relatório completo aqui.
Para o Conselho, “A morosidade e a ausência de uma sinalização clara do governo federal em defesa dos territórios indígenas tiveram influência direta no alto número de conflitos registrados, muitos deles com intimidações, ameaças e ataques violentos contra comunidades indígenas.”
Vilma Vera é taxativa sobre as consequências do não atendimento das demandas indígenas: “Eu vim com um grito urgente, e se o estado brasileiro não tomar uma providência ele terá que assistir ao massacre dos povos indígenas”.
Fonte: Rede Lume de Jornalistas