Foram, pelo menos, seis viagens a trabalho nos últimos dois anos para a empresária do ramo de eventos Luciana Teixeira, de 38. Os destinos e os motivos eram diferentes, mas um mesmo questionamento esteve presente em todas as ocasiões: “Com quem você deixou seu filho?”. “Já me senti uma péssima mãe por ter de trabalhar fora, às vezes por mais de uma semana. Só muita sessão de terapia mesmo para me fazer lidar bem com essa culpa”, conta a carioca, que é mãe solo de Inácio, de 8 anos. “O próprio pai, que deveria dividir comigo a responsabilidade sobre o filho, já me retaliou por isso.”
A dinâmica em torno do cuidado com os filhos e a desigualdade nas cobranças conforme o gênero ganharam destaque na última semana, com o caso da velocista Flávia Maria de Lima, que participou da prova dos 800 metros no atletismo feminino nos Jogos Olímpicos de Paris, que termina neste próximo domingo. Ela revelou, numa entrevista, que o ex-marido alegou abandono parental ao protocolar todas as suas viagens a trabalho em uma ação pela guarda da filha, de 6 anos.
Nas redes, a atleta, que terminou em 15º lugar na competição e não disputou as finais, recebeu apoio de anônimos e famosos, como Paolla Oliveira e Samara Felippo.
A boa notícia é que, segundo a advogada Ana Borela, especialista em Direito de Família, há questões muito mais relevantes a serem levadas em conta no processo de decisão de guarda da criança. “Nesses casos, o juiz analisa qual genitor tem mais condições de prover um ambiente seguro para o filho, avaliando situação financeira e afeto, entre outros fatores”, explica. “Não faz sentido que uma das partes seja penalizada por viagens a trabalho, algo pontual e temporário.”
Carol Barcellos, repórter da TV Globo que cobriu o evento em Paris, repercutiu o desafio de Flávia fora das pistas. “É chocante que em Jogos Olímpicos igualitários tenhamos esse tipo de caso. Imagino que ter pai ou mãe atleta deva ser uma grande referência e motivo de muito orgulho, não algo que precise ser punido porque envolve viagens”, comenta.
Mãe de Julia, de 12 anos, a jornalista também já ouviu comentários desagradáveis sobre a rotina de viagens a trabalho, que a impediu de comparecer a aniversários, eventos e apresentações na escola da menina. “Não gosto de falar que estive ausente, porque acho que a presença não se faz só fisicamente e o dia inteiro. Às pessoas que falam ‘caramba, mas você não fica chateada?’, tenho uma resposta padrão e espontânea: ‘é o meu trabalho’. Não é fácil, essa distância também se torna um desafio profissional para nós”, diz Carol, que chegou a passar 45 dias no Japão, durante os Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021. Além disso, participou de coberturas em Copas do Mundo e em Olimpíada de Inverno.
Diretora do documentário “Incondicional: o mito da maternidade”, com previsão de estreia para o fim do ano, Patrícia Fróes, de 39 anos, tem uma rede de apoio familiar, além do ex-marido, para ajudar nos cuidados com o filho Lino, de 9 anos, quando precisa apresentar projetos em festivais pelo Brasil e no exterior. A carioca observa que os comentários mais controversos vêm, principalmente, de mulheres. “Vivemos numa sociedade que nos é imposta essa pressão. Então, é algo que já está introjetado na realidade de muitas delas”, afirma.
Maria Carolina Medeiros, professora da Fundação Getúlio Vargas e especialista em socialização feminina, culpa a “natureza misógina da sociedade, que sempre tenta colocar a mulher num lugar de subalternidade” pelas críticas à dupla jornada da mãe que também é uma profissional. “Ela pode ir para uma Olimpíada, desde que não deixe de desempenhar o papel de mãe. No esporte, já evoluímos muito. Mas, fora dele, quantas outras lutas as mulheres ainda vão precisar vencer nesse remar contra a a maré?”
Fonte: O Globo