Lua Barros, autora de ‘Eu não nasci mãe’, diz que os homens ficaram preservados do cuidar, gerando desigualdades
Nos últimos meses, o debate sobre o fim da escala de trabalho 6×1 ganhou força na opinião pública e se transformou até em uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da deputada federal Erika Hilton (Psol-SP). A discussão, que levanta o questionamento sobre a vida para além do trabalho, expõe o nível de ocupação e cansaço da classe trabalhadora, afetada por uma lógica precarizada de trabalho. A pergunta que fica é: qual é o tempo que sobra para o cuidado?
A educadora parental Lua Barros, autora do livro Eu não nasci mãe, acredita que o debate sobre a escala de trabalho vai para além da economia e tem uma relação direta com o bem-estar das famílias. Recai especificamente sobre as condições práticas para que as pessoas cuidem de si mesmas e da família, em especial das crianças.
O questionamento sobre a intensidade da escala de trabalho pode retirar da invisibilidade a histórica sobrecarga para as mulheres, principalmente na gestão do cuidado com as crianças.
“Quando a gente tá falando de uma escala de trabalho que é 6 por 1, a gente tá falando de uma mulher que não descansa. Ela sai para trabalhar e já deixou a marmita pronta, o uniforme da criança arrumado, já pediu para alguém levar e buscar e que já combinou com alguém que vai levar no médico. Ela não descansa. E eu sempre me faço essa pergunta: a quem serve uma mulher exausta?”
Lua participou do BdF Entrevista desta semana e tratou sobre os desafios para o cuidado com as crianças na nossa sociedade. Ela destacou a sanção da chamada Lei da Parentalidade Positiva pelo presidente Lula e tratou a decisão do governo como algo importante para a sociedade. “É uma lei que vem lembrar a importância do cuidado com as famílias”.
Na entrevista, Lua falou sobre a necessidade de pensar uma sociedade mais sensível à presença das crianças nos espaços e pontuou que, historicamente, o mundo ocidental tem uma relação tensa com a infância.
“[A criança] é um corpo que a gente violenta com muita facilidade. Não violência sexual apenas, mas o poder. É uma relação em que ela está sempre subjugada. A criança ainda é alguém que precisa de uma correção, e é uma correção sempre muito dura, sempre muito violenta”.
“A criança vai promover para a gente a dimensão de um mundo que funciona de outro jeito. A lógica capitalista, liberal, do patriarcado ainda não está operando na criança”, conclui.
Ela também abordou os desafios contemporâneos de criar filhos em uma sociedade dominada pelas telas e pela tecnologia. Destacou a complexidade do tema “uso de telas” pelas crianças, explicando que há diferenças significativas entre dispositivos como celulares, computadores, videogames e televisão.
Lua relembrou a importância de pensar em cidades estruturadas e voltadas para o bem-estar das crianças. Ela defende que uma cidade que funciona para as crianças é uma cidade boa para todos, destacando pontos como transporte público eficiente, espaços de lazer, cultura e urbanização como formas de proporcionar pertencimento e cidadania às crianças.
Confira alguns trechos da entrevista.
Brasil de Fato: Em março, o presidente Lula sancionou a Lei da Parentalidade Positiva, que assegurar uma série de direitos para as crianças, inclusive o direito de brincar. Qual o impacto dessa lei?
Lua Barros: Essa lei chega como um farol. Ela é muito simbólica. Nós somos um dos poucos países que tem o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], que garante direitos. É um estatuto muito jovem, muito recente na nossa história, e ele é pouco cumprido, é pouco conhecido, é pouco observado. E essa lei da parentalidade positiva vem lembrar a gente da importância do cuidado com as famílias, porque a gente não tá falando da criança sozinha, mas o ECA vai pontuar para gente a criança como sujeito, como alguém dentro da sociedade com valor. Essa lei que fala da importância do cuidado com as famílias porque quando a gente vai falar de parentalidade, a gente tá falando de quem cuida, de quem promove essa série de cuidados ao longo do desenvolvimento dessa criança. E aí, pela primeira vez, o parentar e o brincar são entendidos e percebidos como estratégias de combate à violência contra a criança. Isso abre muitas conversas importantes para a gente ter enquanto sociedade porque a família, desde a revolução industrial, vem se reduzindo, vem se tornando o que a gente chama de família nuclear, e isso, na verdade, é um projeto, né? [É um projeto onde a gente isola essas famílias a princípio e depois a gente vai entender que a gente vai isolar as mães nessa função do cuidado, né? E aí a gente deixa de perceber a importância de pensar o cuidado e pensar as famílias dentro de um coletivo maior que é a sociedade. Acho que essa lei aquece os corações.
Nos últimos meses, ganhou força o debate sobre a escala de trabalho no regime 6 por 1 – seis dias de trabalho e um de folga. Como esse tema tem relação com a parentalidade, com o cuidado e, sobretudo, com a dinâmica das mães trabalhadoras?
Eu acho que, quando a gente pensa nesse debate da escala de trabalho, primeiro vem a questão econômica né? Ah, como é que fica a economia? Como é que faz a economia girar se o trabalhador não tiver na linha, engajado, envolvido? Acho que esse é a primeira parada, né? Mas, na sequência, a gente vai precisar entender que a gente tá falando de alguém que trabalha seis vezes por semana e descansa um, e que isso significa que essa pessoa vive para esse trabalho, ela não vive para viver a própria vida, ela não vive para descobrir prazeres, ela não vive para estudar. Ela não vive para crescer. Ela vive para atrofiar. E quem é que tá na ponta desse negócio? São as mulheres. São as mães, que se distanciam dessa família para conseguir grana e colocar comida dentro de casa. Mas vai faltar uma coisa, que é a presença, né? A dimensão do cuidado. A gente não tá destituindo a importância da economia. Muito pelo contrário, a gente tá querendo entender que o cuidado também faz parte dessa economia e também move essa economia. A gente fala que as crianças são futuro. Não. As crianças são o presente. Se a gente não cuidar dessas crianças hoje, a gente vai colocando na sociedade pessoas que estão cada vez mais desfeitas dos seus valores.
E esse debate sobre a escala expõe, de fato, a sobrecarga das mulheres com o gerenciamento do cuidado nas relações familiares, né?
É muito cruel a gente pensar sobre como as mulheres estão nessa engrenagem social, mas a gente precisa falar sobre isso em todos os espaços que a gente está porque a gente, às vezes, nem percebe mais. Tem uma dimensão do cuidado que foi colocada, que foi naturalizada como sendo a dimensão que as mulheres deveriam ocupar. E isso inicialmente faz com que as mulheres se responsabilizem por todo cuidado da casa. Isso dentro de uma visão obviamente branca, eurocentrada, né? A gente tem que estar sempre apontando nossos marcadores, porque essa não era uma realidade das mulheres negras no nosso país, por exemplo. Elas sempre foram uma força trabalhadora. Mas essa mulher que fica dentro de casa, que se responsabiliza pelo cuidado e que ocupa nosso imaginário sobre o que é uma função de uma mulher, ela também resvala para as mulheres negras, que, além de trabalharem, também eram afetadas por essa dimensão de responsabilidade de cuidar dentro das suas casas.
Isso não se desfez ao longo do tempo quando as mulheres passaram a ocupar a força de trabalho. A mulher só acumulou a função ao longo da história. Ao homem, diferentemente da mulher que foi ocupar o mercado de trabalho, das mulheres brancas que foram ocupar o mercado de trabalho, ao homem nunca foi dado a função do cuidado. Eles ficaram preservados disso. Quando a gente olha a linha do tempo e a gente entende que a gente só acumulou a função, o que a gente tem hoje é uma mulher que ela tá absolutamente desfeita, ela tá absolutamente exausta, porque é um acúmulo histórico de funções e o homem não chega junto.
Acho que agora a gente começa a ter essa discussão, né? Agora a gente começa a ver homem chegando, tentando entender o que é a dimensão do cuidado, mas, ainda hoje, esse gerenciamento da casa é amplamente colocado no colo das mulheres. Se a gente tá falando de uma escala de trabalho que ela é 6 por 1, a gente tá falando de uma mulher que ela não descansa. Ela sai para trabalhar e já deixou a marmita pronta, já deixou o uniforme da criança arrumado. Ela não descansa. A quem serve uma mulher exausta? Serve à engrenagem do patriarcado.
Fonte: Brasil de Fato