Plataformas de freelance online que oferecem serviços a big techs como Amazon, Google e Microsoft têm falhado em garantir trabalho justo aos profissionais.
É o que mostra um relatório do projeto Fairwork, iniciativa baseada no Oxford Internet Institute que avalia as condições de emprego em plataformas digitais ao redor do mundo para dar uma nota individual a cada empresa.
O estudo ouviu 750 trabalhadores de 94 países ativos em 15 sites de freelance online. Nenhuma das plataformas analisadas atingiu mais de cinco pontos em dez possíveis.
Uma das avaliadas foi o Mechanical Turk, da Amazon, que tirou zero na prova. Segundo o critérios dos pesquisadores, a plataforma falhou em garantir justiça em pagamento, condições de trabalho, contratos, gestão e representação dos trabalhadores.
No site, trabalhadores executam tarefas braçais que computadores falham em entregar com a sutileza ou a precisão necessárias.
A carioca Amanda, 26, é uma das que usam a plataforma da Amazon. Ela —que é técnica em enfermagem e pediu para ter seu nome preservado— começou a fazer os “bicos digitais” no Mechanical Turk em 2019. Hoje, diz ver menos oferta de emprego no site que havia lhe ajudado a lidar com a dificuldade de se consolidar como profissional da saúde.
Segundo relato de Amanda ao Fairwork, o número de contratantes no site da Amazon caiu após mudanças nas normas da plataforma.
Procurada pela reportagem, a AWS (Amazon Web Services), responsável pelo Mechanical Turk, não respondeu quais garantias dá às pessoas que buscam trabalho na plataforma. A empresa também não informa quantos trabalhadores estão inscritos no site.
Pesquisa do Oxford Internet Institute mostra que as plataformas de freelance remoto reuniam 163 milhões de usuários em 2021.
Essas empresas têm alcance global ou são líderes regionais e oferecem serviços aos maiores atores do mercado de inteligência artificial do mundo, como as trilionárias Amazon, Google, Microsoft e Nvidia.
A origem do nome do Mechanical Turk exemplifica a rotina das pessoas que fazem bicos remotos de caso. Era uma máquina do século 18 que parecia jogar xadrez de maneira autônoma, enquanto era controlada via alavancas por um homem em um alçapão.
Um dos coordenadores do projeto Fairwork, o brasileiro Jonas Valente diz que, assim como a evolução na capacidade computacional, a disponibilidade de trabalho barato na internet foi fundamental para desenvolver os novos modelos de inteligência artificial.
Pessoas descreveram imagens, avaliaram comportamentos, transcreveram áudios e vídeos que serviram para orientar algoritmos. O baixo preço foi possível pela possibilidade de trabalho remoto. “Alguém que mora no Reino Unido compete pela mesma tarefa que um trabalhador sediado em Lagos, na Nigéria”, diz Valente.
Ao mesmo tempo, trabalhadores do Sul global puderam receber em moeda forte, o que garantiu remunerações acima da média local. A própria Amanda elogia a remuneração garantida pelo Amazon Mechanical Turk. “Nunca tive problema com pagamento”, diz.
Os resultados do Fairwork desmontam o que Valente chama de “farsa do nomadismo digital”, uma vida de luxo disponível para uma parcela muito pequena de trabalhadores de alta renda.
A pesquisa mostra que a instabilidade de oferta de freelancer nessa plataforma, por exemplo, coloca em risco a garantia de receber um salário mínimo no mês. Indica também o tempo que os trabalhadores passam sem remuneração na plataforma em treinamentos ou na busca de bicos.
As cinco plataformas pior avaliadas foram Appen (nota 3), Clickworker (1), Scale/Remotasks (1), Microworkers (0) e Amazon Mechanical Turk (0).
Nesses cinco sites, as pessoas conseguiram trabalhar em média 23h30 por semana, das quais 6h18 foram gastas com atividades não remuneradas —o que equivale a mais de um quarto do tempo.
No Mechanical Turk, Amanda diz ter problemas com tarefas indisponíveis para países da América do Sul e reclama da existência de um selo de maestria na plataforma, exigida para algumas tarefas. Segundo ela, a Amazon não explica como obter esse símbolo de competência.
Já Valente afirma que residentes em países que têm inglês como primeira língua levam vantagem na concorrência pelos postos, visto que a maior parte dos contratantes trabalham com o idioma.
Os trabalhadores também têm de se adaptar ao horário em que os trabalhos são oferecidos. Um perfil traçado pelo professor Matheus Viana Braz, da UEMG (Universidade Estadual de Minas Gerais), mostra que os brasileiros se conectam durante a madrugada para conseguir os bicos.
Os resultados integram a segunda rodada de avaliação feita pelo Fairwork com plataformas de trabalho exclusivamente remoto. A Prolific, voltada a projetos acadêmicos, foi a plataforma melhor avaliada em 2022 e perdeu dois pontos. A francesa Comeup conseguiu melhorar em termos de gestão e contratos e saltou de dois para cinco pontos. O Mechanical Turk zerou em ambas as ocasiões.
Valente explica que o Fairwork é uma pesquisa-ação. Os pesquisadores avaliam as empresas com base nas respostas dos trabalhadores e, depois, questionam as empresas sob as queixas encontradas. As plataformas têm até 15 dias para apresentar respostas e obter pontos nos quesitos em que estavam aquém.
A ComeUp e a nigeriana TeraWork, por exemplo, adotaram políticas para garantir o pagamento de salário mínimo local após serem procuradas pelo Fairwork.
As pessoas que trabalham diretamente para a Amazon elegeram a gigante do varejo como a melhor empresa para se trabalhar nos Estados Unidos, segundo pesquisa do LinkedIn.
Neste ano, ao mesmo tempo, trabalhadores do Mechanical Turk começam a recorrer a inteligências artificiais geradoras para entregar mais tarefas e são substituídas pela tecnologia.
Artigo do professor Fabrizio Gilardi, da Universidade de Zurique, de março, mostra que o ChatGPT faz o trabalho de anotação de dados 20 vezes mais barato do que uma pessoa no Mechanical Turk. Contudo, nem toda tarefa disponível no Mechanical Turk ainda é realizável por computadores.
Fonte: Folha de São Paulo