Livro da jornalista Daniela Arbex deu origem à série homônima sobre incêndio que matou 242 em 2013, em Santa Maria (RS)
O dia 27 de janeiro marca uma das maiores tragédias coletivas do país: o incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Dez anos se passaram e até hoje as famílias das vítimas seguem em luta por justiça e memória. Até o momento, apenas os familiares foram punidos – não pela justiça, mas pelo sofrimento que carregam há uma década enquanto lutam para que os culpados sejam responsabilizados.
Para a jornalista Daniela Arbex, o episódio trágico é resultado de uma “sucessão de omissões e equívocos”. Ela é autora do livro reportagem Todo Dia a Mesma Noite, que inspirou a série com o mesmo nome que estreou nesta semana na plataforma de streaming Netflix.
Em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (27), da Rádio Brasil de Fato, a escritora defende que a história seja contada e recontada, para que não se repita. “Eu comecei a ouvir, a oferecer essa escuta qualificada, relatos muito potentes, muito importantes, que me fizeram entender a necessidade da urgência de se construir a memória coletiva do Brasil. Porque esquecer é negar a história. E quando se esquece, a gente repete os erros do passado”, afirma.
A provocação para escrever o livro partiu de um colega de Daniela. Ela conta que, em um primeiro momento, ficou relutante a escrever sobre o caso. Afinal, a tragédia teve ampla cobertura da mídia, e os fatos já haviam sido contados a partir da ótica de diversos personagens. A decisão de documentar o episódio por meio da obra jornalística veio após a escritora se dar conta de que as narrativas ainda não estavam completas.
Críticas
Daniela Arbex é uma jornalista investigativa premiada e de longa carreira na profissão. Ainda assim, não está isenta das críticas pelo seu trabalho. A estreia da série televisiva, por exemplo, suscitou críticas por rememorar a dor das famílias que perderam entes queridos naquela noite de 27 de janeiro.
“O que adianta contar essa história se não vai trazer esses meninos de volta?” Esse foi um dos questionamentos ouvidos pela escritora, que reitera a necessidade da construção da memória para que “outros meninos cheguem em segurança em casa.”
“Eu acho que a gente precisa olhar para o passado não pra ficar preso a ele, mas para que a gente possa repensar o presente para transformar o futuro. Então não dá pra gente continuar fingindo que nada aconteceu. O silenciamento só beneficia os réus e a impunidade”, conclui.
Responsabilização
Familiares e vítimas do incêndio da boate Kiss ainda aguardam respostas da Justiça. Em 2021, quatro pessoas foram acusadas de homicídio pelo Ministério Público do Estado (MPE-RS), sendo eles dois sócios da casa, um cantor e o ajudante da banda que se apresentava na ocasião. Elas foram condenadas pelo Tribunal do Júri a penas de 18 a 22 anos de prisão. O Tribunal de Justiça, no entanto, anulou a sentença e revogou a prisão em agosto do ano passado sob o argumento de descumprimento de regras na formação do Conselho de Sentença.
Segundo o Ministério Público do Rio Grande do Sul, além dos quatro réus por homicídio, 19 pessoas, entre bombeiros e ex-sócios da boate, foram acusadas por crimes como falsidade ideológica e negligência.
Outras 27 pessoas foram denunciadas por falsidade ideológica, porque assinaram documento dizendo morar a menos de 100 metros da boate, o que foi comprovado como mentira.
O então prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer (citado no áudio da entrevista com Daniela Arbex), chegou a ser indiciado no inquérito policial, mas não foi denunciado pelo Ministério Público. O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria, mas não obteve retorno.
“Resolvi pesquisar nas redes sociais o que as famílias estavam falando. Caí numa página em que um dos sócios da boate se lamentava por não poder comemorar o aniversário dele. Então, uma mãe escreveu: ‘você não comemora mais o seu aniversário? E a minha filha que foi comemorar o aniversário de 22 anos com quatro amigas, e nenhuma delas voltou pra casa?’ Eu fiquei atravessada. Isso me tocou de uma forma tão intensa que eu entrei em contato com essa mãe, e fui pra Santa Maria. Quando eu cheguei lá, comecei a perceber que as pessoas não tinham contado todas as suas experiências sobre o que foi aquela noite. Por exemplo, os profissionais da área da saúde”, relata a jornalista.
Fonte: Brasil de Fato