Leio, n’alguma mídia, que ‘após consulta popular’, uma estação de metrô de São Paulo (cujo grande pecado é não chamar Corinthians) ‘deixou de ser denominada Paulo Freire e foi rebatizada fernão dias’. Assim caminha a vida abastecida pela mediocridade (de ‘patas arriba’, como ensinou Galeano).
Registro, pois, o dia em que o estado de São Paulo, ao alvedrio da querença de seu governo de direita, pródigo em não se desvincular do mito de estimação, trocou (ainda que através da testa de ferro de uma concessionária) o nome de uma estação de metrô, substituindo o maior de nossos educadores por um feitor de escravos que tingiu (com o sangue do povo originário) o caminho aberto para o interior do país.
Um golpe conservador aplicado à luz do dia, com a justificativa de que se atendeu a uma ‘consulta popular’ – é para acabar com a semana deste que vos incomoda com a tinta que derrama pela tecla do destino.
Vejam a promiscuidade da situação e seu custo ao imaginário que acalenta o inconsciente coletivo: alguém, em algum lugar, poderá entender que fernão dias foi, historicamente, mais relevante que Paulo Freire – nordestino de Recife. Não foi. Nem nos melhores sonhos da extrema direita, conquanto não se vislumbra qualquer contexto, sob o sol que nos alumia, que possibilite um assassino de povos originários ombrear-se a um educador.
A toda evidência, Paulo Freire é considerado, enquanto educador, sociólogo e filósofo, um dos pensadores mais notáveis na história da educação, quer enquanto pensador livre, quer na conta de sua influência no desenvolvimento da pedagogia crítica – verdadeiro contributo humanista do educador!
Não por acaso é Patrono de nossa educação. Ademais, foi e seguirá sendo o brasileiro mais homenageado da história, com pelo menos 35 títulos de Doutor Honoris Causa de universidades de Europa e América.
É de Paulo Freire, outro tanto, a crítica de método mais importante que abarca nossa educação, suposto que o modelo de sua época se notabilizava pela intervenção do professor na construção de pequenos ‘depósitos de conhecimento’ no aluno, então um destinatário passivo de mensagens recebidas. Freire investiu contra esse modelo, pugnando o que chamou de educação dialógica, onde a abertura leva ao diálogo e induz ao pensamento crítico que faz conhecer a realidade.
Através e pelo conhecimento, Paulo lutou para formar uma sociedade livre, onde a realidade não se alimentasse da bolha que a classe dominante criou, mas sim a enxergasse e viabilizasse críticas possíveis e muito bem-vindas ao desenvolvimento social. O fomento de consciência crítica no alfabetizando adulto também compõe o portfólio de seu contributo humanitário, performando o que foi sua missão de vida (modelo Paulo Freire), no desenvolvimento de nossa capacidade de julgamento.
Deveras e à toda evidência, Freire acreditou que o homem tem por vocação ‘ser mais’. Para tanto, deveria buscar um protagonismo que lhe tornasse sujeito de suas ações, em ordem a se capacitar para atingir a plenitude realizadora e, assim, transformar a sociedade. Paulo Freire protagoniza a luta do homem em mudar as injustiças do mundo pelo conhecimento. O sociólogo foi uma espécie de Quixote do aprendizado, naquilo que acreditou na liberdade enquanto herdeira da capacidade crítica que liberta e possibilita identificar as armadilhas do modelo escravagista explorativo.
Seus moinhos de vento não eram gigantes imaginários, todavia. O educador lutou contra o establishment e os gigantes contra os quais investiu, em seu Rocinante, seriam detratores da ciência e queimariam quase toda a produção acadêmica se tivessem oportunidade – acredito que preservariam livros de autoajuda e do mario vargas lhosa.
Essa singela e rasa referência informa um pouco do educador e filósofo desconhecido do governador dos paulistas (que se elegeu com apoio da extrema direita do messias), naquilo que tarcísio trocou, com o nome da estação de metrô, a educação pelo assassino escravagista, uma vez que os bandeirantes produziam atividade colonizadora explorativa de liberdades e ceifadoras de vidas. Não posso aceitar isso…
Além de leitor de Freire, de quem cultuo sobre quase todas as coisas o extraordinário Pedagogia do Oprimido (onde está desenhada sua pedagogia dialógica), sou paulista do interior (Fernandópolis, ‘terra moça, com progresso sedutor, és criança gigante, que eu amo com ardor’ – by tia Wanda, minha amada tia avó) e não penso ter vivido o suficiente para me acomodar com as injustiças que caminham, neste mundo, a serviço do mal.
À primeira vista pode parecer estultice reclamar de ato administrativo que viabiliza apenas e tão somente a mudança do nome de uma estação de metrô. Minha consciência crítica, todavia, não me abandona jamais – e devo isso há tudo que li.
Assim é que, para além do menoscabo com o nome do maior dos educadores, que filosofou mudar o mundo pelo conhecimento, se põe a homenagem sub-reptícia ao escravocrata bandeirante. Penso que essa mudança atende ao certame do mal que compete com o bem nessa terra, em busca de almas.
É o que dessumo do cambio de nome da estação do metrô, naquilo que o rebatismo homenageia alguém que fez da morte (de índios) e da opressão (de índios e de negros) um ofício a serviço da colonização.
Ademais, não é cristão desmerecer o conhecimento em favor da opressão e, quando tal circunstância se apresenta e a assistimos impávidos, como se não tivesse maiores consequências, feito espectadores passivos da vida, nós alimentamos o mal na opção da própria maledicência.
Momentos há, na história da humanidade, em que a teia do destino costura enfrentamentos diversos e variados, para os quais somos chamados a facear questões aparentemente minúsculas e que, se levadas ao limite, exigiriam esforço e demandariam nosso tempo…
Essas situações aparentemente menores, que para muitos não valeriam nossos esforços, se revelam na ordem cósmica do universo um teste de resiliência onde se escrutinam bondade e verdade no ideário da humanidade. Enfrentar adversidades esgrimindo o que não nos pareça correto, combatendo toda maledicência que se manifeste, compõe uma orientação sistêmica que mantém girando a roda do destino para equilíbrio de nossa existência.
Assim é que a estação de metrô pode até ter mudado de nome; o que não se modifica por decreto fascista é a história. Deveras, enquanto fernão dias segue o trilho da sociedade escravocrata de época, que também matou índios, Paulo Freire continuará conscientizando o homem de seu destino (‘ser mais’) e ocupando lugar de fala que alimente o conhecimento humano – afinal, é disso que a vida é feita.
Sou Paulo Freire – como ensinaram meus pais!
Tristes e maledicentes trópicos.
João dos Santos Gomes Filho
Para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.