Maiores economias do continente fazem as mesmas críticas à hipocrisia de instituições que não conseguem mais dar respostas a problemas globais
Enquanto o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva se afirma como a voz do Sul Global, durante o aplaudido discurso na Assembleia Geral da ONU, os vizinhos de continente ecoam suas críticas em uníssono para fortalecer as demandas de países emergentes, que quase sempre foram ignorados pelos organismos multilaterais dominados pelos países ricos.
Além de Lula, discursaram durante a 78ª Assembleia nas Nações Unidas nesta terça-feira (19), em Nova York, Gustavo Petro (Colômbia) e o presidente da Argentina, Alberto Fernández. E não foram apenas as economias mais pujantes do continente que unificaram críticas ao sistema financeiro global, alertando por reformas, além de expressar alarme com a crise climática. O cubano Míguel Díaz-Canel e o boliviano Luís Arce também uniram forças nas críticas que mostram uma ONU fragilizada diante dos desafios geopolíticos. Até mesmo o presidente dos EUA, Joe Biden, alinhou frases com Lula, apesar das divergências sobre a Ucrânia.
O discurso do presidente Lula teve uma conotação histórica ao abordar todos os principais desafios da humanidade na atualidade e expressar a visão do Sul Global diante desses temas. Uma visão que reivindica uma reforma dos organismos multilaterais como a própria ONU e seu Conselho de Segurança, paralisado em 1945. Sem isso, não é possível solucionar guerras, conflitos comerciais e a crise climática que avança, apesar dos discursos inócuos.
Exemplos da ineficácia desses organismos de diálogo diplomático são as sanções econômicas e o embargo contra Cuba, mantidos pelos EUA, há décadas ou o impasse na criação de um Estado Palestino. “O Brasil seguirá denunciando medidas tomadas sem amparo na Carta da ONU, como o embargo econômico e financeiro imposto a Cuba e a tentativa de classificar esse país como Estado patrocinador de terrorismo. Continuaremos críticos a toda tentativa de dividir o mundo em zonas de influência e de reeditar a Guerra Fria”.
Biden e o clima
Lula e Biden expressaram opiniões similares em matéria de combate às mudanças climáticas “como a ameaça existencial para toda a Humanidade”. Lula também mencionou as catástrofes que ocorrem em todo o mundo por causa do aquecimento global.
Um dos temas do discurso do presidente brasileiro foi o combate à desigualdade social, representada por um mundo com mais riquezas nas mãos de dez pessoas do que dos 40% mais pobres do mundo. Biden, por sua vez, afirmou que “os EUA procuram um mundo mais seguro, mais próspero e mais equitativo para todas as pessoas, porque sabemos que o nosso futuro está ligado ao seu. E nenhuma nação pode enfrentar os desafios de hoje sozinha”.
Outro tema abordado por ambos foi a necessidade de reformar organismos internacionais, entre eles o próprio Conselho de Segurança da ONU, demanda histórica de todos os governos brasileiros nas últimas décadas. Lula lavou da perda de credibilidade do Conselho com guerras travadas apesar do organismo e seus vetos. Mais países significaria mais representatividade no órgão. Biden, cujo país é membro permanente, o que significa ter poder de veto no Conselho, concordou: “Precisamos de mais vozes e mais perspectivas na mesa.”
Para Lula, estabilidade e segurança mundiais só serão alcançadas com inclusão social e o fim da desigualdade, com a ONU cumprindo seu papel como casa do entendimento e do diálogo. Neste quesito, ele se contrapõe à defesa intransigente de Biden ao fomento à guerra na Ucrânia para derrotar a Rússia.
“A comunidade internacional precisa escolher: de um lado, está a ampliação dos conflitos, o aprofundamento das desigualdades e a erosão do Estado de Direito.” afirmou Lula, completando: “De outro, a renovação das instituições multilaterais dedicadas à promoção da paz”.
Petro, a paz e o sistema financeiro
O colombiano propôs “acabar com a guerra para termos tempo de nos salvar”, em especial sobre a situação na Ucrânia e Palestina. Ele expôs a hipocrisia do sistema internacional ao tratar com dois pesos e duas medidas as ocupações na Europa e o Oriente Médio. “As mesmas razões que usam para defender o Zelensky deveriam ser as mesmas usadas para defender a Palestina”, declarou Petro.
“Proponho que as Nações Unidas patrocinem duas conferências de paz o mais rapidamente possível: uma sobre a Ucrânia e outra sobre a Palestina, não porque não haja outras guerras no mundo, como no meu país, mas porque ensinariam a fazer a paz em todas as regiões do planeta”, complementou.
Petro também propôs durante o seu discurso a reforma do sistema financeiro internacional, a fim de reduzir a dívida pública internacional. O líder colombiano apontou que os fundos públicos estão enfraquecidos pelas dívidas externas, o que também aflige o combate à crise climática e ambiental, que depende do financiamento desses fundos.
Petro fez um apelo emocionado contra a guerra às drogas, ao afirmar que os Estados Unidos prenderam e mataram milhões de latino-americanos e africanos, destruiram democracias, em função da “guerra às drogas”. “Mas nunca prenderam os jovens ricos de Manhattan”, criticou.
O presidente colombiano afirmou ainda que o governo norte-americano enfrenta, hoje, “o maior desdobramento da guerra às drogas”, que seria o alto consumo de fentanil nos EUA, uma droga responsável por centenas de overdoses diárias no país.
“A guerra às drogas já dura 40 anos, se não corrigirmos o curso e continuarmos por mais 40 anos, os Estados Unidos verão 2,8 milhões de jovens morrer de overdose devido ao fentanil, que não é produzido em nossa América Latina. Eles verão milhões de afro-americanos presos em suas prisões privadas”, acrescentou.
“Ao esconder a verdade, eles verão a selva e as democracias morrerem. A guerra às drogas falhou. A luta contra a crise climática falhou”, disse Petro.
“Em vez de falarmos sobre como defender a vida para o futuro, decidimos, no entanto, gastar nosso tempo matando uns aos outros. Não estamos pensando em como expandir a vida até as estrelas, mas sim em como acabar com ela em nosso planeta”, disse.
O chefe do Executivo colombiano também falou sobre a cobrança para países da América Latina atuarem em guerras estrangeiras. De acordo com Petro, “[outros países] esquecem que nossos países foram invadidos inúmeras vezes pelas mesmas pessoas que agora estão falando sobre combater invasões”.
Em tom pessimista, o líder colombiano declarou que a comunidade internacional não será capaz de cumprir os objetivos de desenvolvimento humano até 2030. Para ele, nos últimos anos, houve retrocessos.
Fernández e o FMI
Sob o governo do neoliberal Mauricio Macri, a Argentina contraiu um empréstimo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 57 bilhões de dólares, em 2018, que paralisa o país numa crise crônica financeira.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, criticou em seu discurso a “arquitetura financeira global”, baseada na especulação em detrimento do desenvolvimento e na mão de obra barata em vez do trabalho digno. Em sua última participação no evento, já que não concorre à reeleição, Fernández disse que “o sistema financeiro internacional não mostra vontade de se adaptar a um mundo que requer a recuperação da equidade perdida ao longo dos anos. Pelo contrário, busca manter a imposição das mesmas políticas ortodoxas que aprofundaram a desigualdade e a miséria que vemos hoje no mundo”.
“O FMI não pode aumentar as suas taxas de juros sempre que o Fed (o banco central dos Estados Unidos) aumenta as suas taxas para conter a inflação no país. Ele não pode fazer isso, mas faz”, declarou Fernández. “É vergonhoso que ainda hoje se apliquem sobretaxas a muitos países que já não conseguem suportar o peso da dívida externa.”
Fernández também afirmou que a Argentina se opõe à adoção de medidas coercitivas unilaterais e de práticas comerciais discriminatórias. Segundo ele, “a perpetuação do bloqueio contra Cuba é inaceitável”.
“Ano após ano, esta Assembleia Geral exige – por uma esmagadora maioria – a necessidade de colocar fim a este bloqueio. Da mesma forma, as sanções impostas pelos Estados Unidos à Venezuela devem cessar imediatamente”, acrescentou.
Numa referência indireta ao crescimento eleitoral da extrema direita em seu país, com o candidato Javier Milei, do partido A Liberdade Avança, o líder argentino diz que “o desafio da Argentina agora é avançar na agenda de direito, o que significa reforçar as políticas que produzam equidade entre os cidadãos. Os direitos humanos também são fundamentais e precisam ser defendidos, porque se há retrocesso nesse sentido quem ganha são os promotores dos discursos de ódio. Assim as democracias se deslegitimam e a crise de representação que surge disso acaba colocando em xeque a institucionalidade e o Estado de direito”.
O presidente argentino completou dizendo que representa “um país que está celebrando este ano os 40 anos da recuperação da democracia. Um país que aprendeu em seu passado a dizer ‘nunca mais às violações aos direitos humanos’ e que promoveu, como política de Estado, o direito à memória, à verdade, e à justiça”.
Cuba contra o neocolonialismo
O presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel Bermúdez, em nome do grupo G77 e da China, exigiu uma transformação profunda da atual arquitetura financeira internacional e o fim das medidas coercivas unilaterais.
O líder classificou a arquitetura financeira internacional como injusta “porque foi concebida para lucrar com as reservas do Sul, perpetuar um sistema de dominação que aumenta o subdesenvolvimento e reproduzir um modelo de colonialismo moderno”.
O presidente exigiu ainda a recapitalização dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento e uma revisão no papel das agências de crédito.
“Enquanto os países mais ricos não cumprem o seu compromisso de atribuir pelo menos 0,7% do seu Produto Interno Bruto à Ajuda Oficial ao Desenvolvimento, as nações do Sul têm de gastar até 14% do seu rendimento para pagar os juros associados à dívida externa”.
Dentro de suas sugestões de reforma, propôs incluir cláusulas para proporcionar alívio e reestruturação para países que sejam afetados por catástrofes naturais, por exemplo.
Nesta linha, denunciou que embora Cuba não seja o primeiro Estado soberano que sofre com medidas coercivas unilaterais pelo governo dos Estados Unidos, é o país que sofre com tais medidas há mais tempo, desde 1962.
Da mesma forma, rejeitou os bloqueios impostos a demais países, como Zimbabué, Síria, Irã e Coreia do norte, além de reiterar sua solidariedade com a causa do povo palestino.
Arce e a nova ordem mundial
Luis Arce também afirmou que está sendo construída uma nova ordem mundial na qual a ONU tem um papel fundamental. Para ele, há “desafios pendentes” que seguem na atualidade. Ele, no entanto, fez um apelo contra o confronto bélico.
“Devemos pôr fim, de uma vez por todas, à corrida armamentista e priorizar o diálogo sincero e a diplomacia do povo”, disse Arce, ao mesmo tempo que destacou que “é urgente que as nossas nações se unam num esforço coletivo, com vozes diversas”, disse.
Fonte: O Portal Vermelho