Manifestações de parlamentares contra decisões do Supremo suscitam debate sobre responsabilidades de cada um
Votações do Supremo Tribunal Federal (STF) que ganharam as manchetes nos últimos dias, como a do marco temporal e a da possível descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, abriram espaço também para um debate que deixa muita gente em dúvida: o que acontece quando há divergência nos entendimentos do STF e do Congresso Nacional? O Brasil de Fato ouviu especialistas da área do direito para ajudar a esclarecer o cenário.
Em linhas gerais, é possível dizer que o Supremo tem o papel de “guardião da Constituição”. Na prática, cabe ao Tribunal, quando solicitado por agente externo, deliberar se determinado tema está de acordo ou não com o que prevê a Constituição Federal, em vigor desde 1988, e que define os limites de atuação dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Esse papel, inclusive, foi lembrado pela ministra Rosa Weber nesta sexta-feira (22) ao definir seu voto favorável à descriminalização do aborto. “Na democracia brasileira a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis. Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional”, pontuou a ministra.
Após a decisão do STF de, por 9 votos a 2, considerar inconstitucional a tese do marco temporal, parlamentares argumentaram que o Tribunal estaria “legislando” sobre o tema. A oposição inclusive protocolou na última quinta (21) uma Proposta de Emenda Constitucional – mudança na lei que necessita, entre outros trâmites – do voto de três quintos dos deputados e dos senadores – para tentar driblar a decisão do STF. Mas, de acordo com os juristas consultados pelo Brasil de Fato, essa manobra não deve funcionar.
Confira esclarecimentos apontados pelos especialistas sobre os momentos de divergência entre STF e Congresso, inclusive, a respeito da aprovação de PECs divergentes de decisões do Supremo:
Fernando Fernandes, advogado criminalista, doutor em Ciência Política e mestre em Criminologia e Direito Penal
O que acontece se o Supremo e o Congresso discordarem em determinado assunto? As respostas vão ser várias, mas quando vamos a uma questão concreta, que o Supremo tenha julgado constitucional ou inconstitucional, o Congresso Nacional não pode alterá-lo. Exemplo: o Supremo Tribunal Federal julgou que a Constituição brasileira exige a admissão da regulamentação da união homoafetiva. Portanto, o Congresso Nacional não pode proibí-la, porque estaria agindo, neste caso, contra a Constituição.
A tentativa de se proibir algo que o Supremo Tribunal Federal disse que é Constitucional é inválida. Mesma coisa: o Supremo Tribunal Federal diz que o princípio da presunção de inocência garante ao réu o recurso em liberdade, excetuados a prisão em flagrante; a prisão preventiva, que é quando o sujeito vai fugir, ofender testemunha, prejudicar o processo; portanto, o Congresso Nacional não pode fazer uma regra e dizer “eu vou recolher antes do trânsito em julgado fora das situações excepcionais”.
Existem casos específicos, constitucionais, de discordância. O Supremo prende quem não pode ser preso se não em flagrante delito por crime inafiançável, mas o Supremo prende, nos casos constitucionais, um deputado federal. O Congresso pode soltar [o parlamentar], está previsto constitucionalmente. O ministro do Supremo comete um ato de improbidade real – não no discurso. O Senado pode realizar o impeachment. Mas o que está se vendo não é isso, o que está se vendo é linhas políticas dentro do Congresso quererem desfazer uma decisão do Supremo Tribunal Federal, aí não é possível.
E se o Congresso mudar a Constituição?
A própria Constituição diz que um a lei não prejudicará o direito adquirido, portanto, nenhuma lei pode mudar um direito anterior a ela. O Congresso não pode ir em direção contrária ao entendimento do STF.
Nuredin Ahmad Allan advogado integrante da executiva nacional da ABJD
Me parece que o mais adequado não é tratar como se fosse divergência, porque eles estão estão em campos, até no âmbito Constitucional, distintos. Pelo que estabelece o artigo segundo da Constituição Federal, os poderes são autônomos e independentes. Mas, para a gente pensar um pouco nessa divergência, precisamos lembrar que nos últimos anos, especialmente no governo Bolsonaro, havia efetivamente um projeto autoritário, intolerante, antidemocrático e que era muitas vezes validado por um Congresso, em sua formação e articulação politica, alinhado com esses preceitos. Nesse período o STF muitas vezes, de fato, atuou dentro do papel dele, que é a preservação, o cumprimento da Constituição Federal, porque foi acionado pela sociedade ou pelo Ministério Público, num cenário de instabilidade política, instabilidade social, instabilidade institucional.
Se criou no âmbito do Congresso Nacional uma sensação de que tudo se pode e, no âmbito do STF, dentro do Poder Judiciário, uma espécie de freio de contenção. O STF errou muitas vezes nesse período, até antes dele. O STF erra muitas vezes, especialmente quando lida com direitos sociais laborais, mas, ao fim e o cabo, é o guardião, o responsável pela interpretação, não apenas da aplicação da Constituição como também das legislações infraconstitucionais, caso haja esse tipo de violação.
A função do Congresso, a função política dos deputados, dos senadores, isso não se nega, mas a construção dos processos legislativos precisa observar a legislação. Quando isso é violado, o STF tem que ser acionado pela sociedade civil, pelo Ministério Público, e precisa se manifestar sobre essas violações que a casa legislativa acaba por promover. Quando a gente fala em divergência, se o político entender que o papel dele é esse, que ele precisa atender a demanda de quem patrocinou a campanha dele, tudo bem. Mas para isso existe primeiro a CCJ [Comissão de Comissão e Justiça] para barrar isso dentro da própria Casa. Se isso for superado, entra sim a necessidade de atuação do STF, por conta do controle de constitucionalidade.
E se o Congresso mudar a Constituição?
O Congresso tem autonomia para propor uma mudança na Constituição que divirja de uma decisão do STF. Além de seguir todos os trâmites previstos para isso, é necessário que o mérito dessa proposta não viole certos trechos da Constituição, especialmente cláusulas pétreas.
É preciso uma análise sistêmica para verificar se a PEC viola ou não a Constituição, entender todo o seu contexto. Se ela violar, pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade, e, assim, afastada. Tentativas de o Congresso pegar “atalhos” para fugir de decisões do STF podem ser barradas assim.
Tania Oliveira, advogada e historiadora, integrante da Coordenação Executiva da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)
O poder Legislativo possui autonomia para legislar a e tomar decisões sobre os temas em geral, aprovar leis que modifiquem outras leis, que criem e excluam direitos e deveres – desde que, é claro, não firam a Constituição Federal. Então, se houver uma decisão sobre uma matéria que não seja constitucional e depois o Congresso legislar, vale a nova lei. O Poder Judiciário, por meio do Supremo Tribunal Federal, exerce o controle de constitucionalidade das leis. Significa que uma lei que fere a Constituição Federal já nasce inconstitucional. É o caso, por exemplo, do marco temporal. Após o STF decidir que o marco temporal é inconstitucional, o Congresso Nacional não pode posteriormente aprovar uma lei determinando que ele seja aplicado.
Um projeto de lei que proíba a união homoafetiva já nasce inconstitucional, porque o STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres, reconhecendo, assim, a união homoafetiva como um núcleo familiar. No caso, as leis que nascem inconstitucionais passam pela análise de constitucionalidade na sanção presidencial e se for sancionada se faz uma provocação ao STF para que ela seja declarada inconstitucional. Então não se trata de conflito entre STF e Congresso. Cada um atua dentro de suas competências.
Melina Fachin: advogada, pós-doutora em Direito, professora da UFPR, sócia do escritório Fachin Advogados Associados. Filha do ministro do STF Edson Fachin.
Quando o Congresso aprova uma lei que é considerada inconstitucional, o STF pode ser acionado para analisar a constitucionalidade da lei em questão – não atua de ofício. O STF é a instância máxima de interpretação da Constituição Federal e, como tal, tem o poder de declarar uma lei inconstitucional. Se a maioria dos ministros e ministras do STF decidir que a lei é inconstitucional, ela é considerada nula e sem efeito, e não pode ser aplicada.
Quando há um desacordo entre o Congresso e o STF, é comum que ocorram debates públicos, jurídicos e políticos intensos. Grupos da sociedade civil, especialistas e membros do Congresso podem expressar suas opiniões sobre a questão, pressionando tanto o Poder Legislativo quanto o Judiciário.
Se o Congresso discordar de uma interpretação do STF sobre a Constituição e acreditar que essa interpretação prejudica o exercício de suas competências constitucionais, os legisladores podem buscar aprovar uma Emenda Constitucional para alterar a Constituição.
Especificamente no caso entre as uniões homoafetivas há flagrante inconstitucionalidade – violação expressa do texto constitucional – e neste caso, inclusive, nem se caberia falar em emenda à constituição [PEC] porque ela esbarraria nas cláusulas pétreas – nos termos do que disciplina o art. 60, p. 4º do texto constitucional.
Fonte: Brasil de Fato