Bairros ricos são imunes ao policiamento domiciliar na política criminal de drogas, afirmam pesquisadores; das entradas em domicílio pesquisadas, 85% ocorreram em bairros de maioria negra
Bairros mais ricos e com população predominantemente branca são praticamente imunes às entradas policiais em domicílios em ações que envolvem crimes de drogas. Raça e renda são marcadores importantes para atuação da polícia nesses casos, com 91% das incursões ocorrendo em locais mais pobres e 84,7% de residentes majoritariamente negros.
Quem aponta essa discrepância é o estudo “Entrada em domicílio em caso de crime de drogas: geolocalização e análise quantitativa de dados a partir de processos dos tribunais da justiça estadual brasileira”, lançado em novembro do ano passado.
A análise aprofunda dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) na pesquisa “Perfil do Processado e Produção de Provas em Ações Criminais por Tráfico de Drogas”.
Neste aprofundamento, os pesquisadores investigaram as características das entradas em domicílios a partir das cidades de cada região federal em que houve mais registros. São eles: Manaus, Fortaleza, Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro.
Nas cinco cidades, foi observado o total de 307 entradas. Dessas, 84,7% ocorreram em bairros predominantemente ocupados por pessoas negras e 91,2% ocorreram em bairros com renda domiciliar mensal per capita de até um salário mínimo.
Apenas seis entradas ocorreram em bairros com renda de cinco a dez salários mínimos, das quais metade foram entradas com autorização judicial. Não houve nenhum registro de entrada domiciliar em bairros com renda média superior a dez salários mínimos.
Um dos responsáveis pela pesquisa, o pesquisador e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Rafael de Deus Garcia, diz que a análise demonstrou um certo “cinturão de imunidade” nas áreas ricas.
“Aqui em Brasília, em Águas Claras, bairro de classe média, que predomina de pessoas brancas, você teve entrada com mandado. Ou seja, aquela ideia de que os bairros mais ricos entram com mandado, aqui em Brasília, nós vimos que acontece no bairro de classe média, porque os bairros mais ricos, centrais mesmo, nem entrada têm, nem com mandado judicial”, disse.
Natalia Cardoso Amorim Maciel, também pesquisadora e co-autora do estudo, afirma que o resultado ajuda a entender a marginalização de certos territórios. “Se usa ‘favela’ e ‘comunidade’ para se referir a um território naturalmente marginalizado pelas classes dominantes. E naqueles espaços você pode marginalizar as pessoas de outra maneira. É permitido fazer certas coisas naquele território que não é permitido em outros territórios da cidade”, fala.
Ponto central da pesquisa, a inviolabilidade domiciliar é tratada no artigo 5º da Constituição Federal. “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, diz o texto.
Essa mesma previsão também é estabelecida na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário.“Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação”, afirma o texto da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em 49,1% dos processos analisados, houve entrada no domicílio. Deste total, em 56% não foi obtida informação sobre a existência ou inexistência de consentimento para a entrada; 7% dos processos apontaram versões conflitantes sobre a permissão e a recusa foi verificada em 3% dos casos.
Outro ponto investigado é o contexto das entradas. Em 45% dos casos, o réu estava dentro de casa quando foi abordado, sem que houvesse registro sobre a motivação da abordagem. Já em 20,6% das ocorrências, houve abordagem sem flagrante e a autoridade policial foi levada até a casa do réu, onde houve apreensão de drogas e, posteriormente, prisão.
E apenas em 15,6% dos casos há registro de que a entrada em domicílio se deu em cumprimento de mandado de busca e apreensão.
“É um problema muito grave de você não questionar essa entrada, não ter um tipo de baliza mais objetiva mesmo para a ação da polícia. Dado que para ela é permitido fazer tudo naquele território, qualquer justificativa apresentada é válida do ponto de vista legal. Ela consegue ser convencida porque, no final, ou com flagrante, ou com apreensão de drogas, isso resolve tudo, do ponto de vista do processo. A apreensão da droga e encontrar essa prova de que a pessoa estava portando algo ilegal tende a resolver todas as acusações do processo e comprovar a culpa”, afirma Natália.
A dupla de pesquisadores defende ser necessário critérios mais objetivos para esse tipo de ação. Rafael comenta que decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm caminhado neste sentido. A linha aplicada é mais restritiva ao arbítrio policial, no sentido de não chancelar a entrada justificada apenas na argumentação da possibilidade de existência de crime. Há necessidade de comprovar a urgência da situação.
“Quer entrar na casa? Ou pede o mandado e justifica a suspeita ou comprova a urgência. O que quer dizer isso? Se você não entrar naquela hora, você vai perder a prova ou você vai deixar alguém em perigo. Qual é a ideia do flagrante? Se tem uma pessoa sendo vítima de um crime no domicílio, o que o policial vai pedir? Autorização judicial? Agora, no caso de crime de droga, não tem isso. Normalmente, se há atos investigativos ou ainda levantamento de informações, seja lá o que for, faz com que a polícia creia que ali dentro tem droga. Dá para pegar esses motivos, mostrar para o juiz e pedir autorização”, explica Rafael.
Em outubro do ano passado, a 5ª Turma do STJ decidiu que os policiais podem revistar uma pessoa ao sentir cheiro de maconha, mas não devem entrar na casa da pessoa alvo sem mandando judicial, mesmo com autorização do morador.
Esse tipo de ação se mostra ainda mais necessária no caso das ações que envolvem a Lei de Drogas, diz Natália. “Já que a entrada é exceção, para ela ser autorizada, tem que ter alguns caminhos muito objetivos de comprovação. Na nossa política de drogas, tudo que tende a ficar para interpretação dos juízes ou dos policiais tem essa tendência ao encarceramento. Desde que a Lei de Drogas entrou em vigor, o crescimento que tivemos de pessoas encarceradas por drogas tem muito a ver com essa versão de quem é que diz que aquilo ali era tráfico, quem é que diz que aquilo ali não era tráfico.”
A pesquisadora avalia que é necessária também atuação do Ministério Público, da Defensoria e do Judiciário na fiscalização das ações das polícias. “Se estamos lidando com uma organização, falando das polícias de forma geral, que tendem a abusar de poder no nosso país, precisamos ter orientações objetivas para restringir esse tipo de abuso. Se não temos isso vindo de cima, não dá para esperar de outro lugar. Ou é a polícia, mesmo se organizando e vindo de controles externos através do Ministério Público, das Defensorias e do Judiciário, indicando exatamente quais são as condutas que são aceitáveis e quais não são aceitáveis que conseguimos fazer esse controle”, pontua.
Fonte: Ponte Jornalismo