Dos 12 estados brasileiros analisados por pesquisa da plataforma JUSTA, apenas quatro destinavam políticas para quem sai do sistema carcerário. Polícia Militar foi a que mais recebeu verba
Para cada R$ 4 mil gastos com as polícias, os estados investiram apenas R$ 1.050 com o sistema penitenciário e R$ 1 em políticas públicas para quem sai da prisão. O dado é fruto da análise do JUSTA, organização que atua no campo da economia política de justiça, e inclui o orçamento de 12 estados. Juntos, eles somam R$ 66 bilhões, quase 70% do orçamento total de todas as unidades da federação.
Lançado na segunda-feira da semana passada (15/1), o estudo “O funil de investimento da segurança pública e prisional no Brasil” tem como ano-base 2022 e inclui dados de Acre, Bahia, Ceará, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, São Paulo e Tocantins.
Foram analisadas três frentes dos orçamentos estaduais: os valores gastos com as polícias, com o sistema penitenciário e com políticas públicas para egressos. O estudo considerou informações públicas como a Lei Orçamentária Anual (LOA), o Plano Plurianual (PPA) e os portais de transparência estaduais.
Em relação a ações ou programas voltados para egressos, os pesquisadores realizaram busca adicional quando não encontraram nos PPAs e nas LOAs menção direta a essa população. Assim, passaram a considerar ações de governo mistas quando o recurso é destinado a pessoas presas, egressos e outros (sem separação entre os públicos).
A partir dos dados, o diagnóstico é que há um funil, como sugere o título da pesquisa, onde o investimento maior é concentrado na porta de entrada do sistema prisional em detrimento dos que dele saem. O ideal, explica Luciana Zaffalon, diretora-executiva do JUSTA, é a inversão dessa lógica.
“A ideia de inverter o funil de investimento se propõe a colocar em questão o paradigma hegemônico vigente, que aponta para o encarceramento como se ele fosse uma medida natural, esperada e o único caminho possível. O que defendemos é justamente a mudança de paradigma. É necessário mudar o paradigma de solução pública e interromper a naturalização do encarceramento em massa. E isso não se faz possível se nós continuarmos com um contingente enorme de recursos sendo investido na porta de entrada do sistema prisional”, afirma Luciana.
Somados, os 12 estados gastaram R$ 53,2 bilhões em policiamento, R$ 12,7 bilhões no sistema penitenciário e apenas R$ 12,1 milhões com políticas exclusivas para egressos.
No caso dos gastos com as polícias, a maioria dos recursos ficou com a Polícia Militar (66,5%). A Polícia Civil recebeu, desse montante, 22,6% dos recursos (R$ 11,4 bilhões), enquanto a Polícia Técnico-Científica e Forense ficou com apenas 2,7% da verba (R$ 1,3 bilhão). Cerca de R$ 8,7 bilhões foram destinados para verbas compartilhadas.
Para Luciana, é preciso avançar na discussão sobre o desfinanciamento das polícias e do sistema prisional, este último reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em outubro do ano passado como sujeito de violações massivas de direitos fundamentais.
“Eu acredito que, traçando aqui um paralelo histórico, é possível que, daqui a alguns séculos, nós sintamos com relação ao sistema prisional a mesma vergonha que, hoje, nós sentimos com relação à escravidão. É um contrassenso que nós pretendamos nos denominar como uma civilização democrática e vivamos com a barbárie que acontece dentro do sistema prisional dia após dia”, defende.
Rio é estado que mais gasta com polícia
O Rio é o estado que mais gasta proporcionalmente com as polícias, dedicando 10,8% do orçamento para as forças de segurança. O estado comandado por Cláudio Castro (PL) não investiu em políticas exclusivas para egressos do sistema prisional em 2022.
Já a verba destinada ao sistema prisional, que foi de R$ 1,1 bilhão, supera o que foi gasto com cultura, saneamento, organização agrária, esporte e lazer e ciência e tecnologia que, juntas, somaram R$ 813 milhões.
Entre as polícias, foi a força militar a que recebeu a maior fatia do orçamento: 80% foi destinado à ela (R$ 7,6 bi), enquanto a Polícia Civil ficou com 19,9% (R$ 1,9 bi). Um montante de R$ 4,6 milhões ficou como despesa compartilhada entre as duas policiais.
Outro destaque é São Paulo. O estado é que mais gasta com polícias e sistema prisional, em termos absolutos, superando R$ 19 bilhões. No caso das forças de segurança, é a militar a mais privilegiada — foram desembolsados R$ 9,8 bilhões, o que representa 66,6% do total.
Em São Paulo, para cada R$ 1.687 gastos com as polícias e R$ 527 com o sistema penitenciário, R$ 1 foi destinado aos egressos. No PPA de 2021-2022, o JUSTA identificou um programa que prevê sete ações, em parte, voltadas para os que deixam o sistema prisional. O problema é que a maioria delas se refere apenas a custodiados e a investimentos administrativos.
A ressocialização de egressos também parece distante dos planos dos atuais gestores do Estado. Enquanto ainda era deputado federal, Guilherme Derrite apresentou o projeto de lei 4.086/2019, que propunha a alteração da Lei de Execução Penal (LEP) ao retirar o direito das saídas temporárias. A proposta foi retirada de pauta por Derrite, mas o atual secretário de segurança pública de São Paulo chamou recentemente de “maléfica” a saída (que é legal) ao comentar a morte de um policial militar em Belo Horizonte (MG).
Em 5 de janeiro, o sargento Roger Dias da Cunha, 29 anos, foi baleado por um homem que estava em saída temporária. Ele morreu dois dias depois.
“CHEGAMOS AO LIMITE. A saída temporária já apresentou diversas provas de que é maléfica para a sociedade, mas dessa vez um policial militar morreu nas mãos de um criminoso que deveria estar atrás das grades, mas estava solto por conta desse benefício que alguns ainda defendem”, escreveu no x (antigo Twitter).
O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) também tem se mobilizado pelo fim das saídas temporárias. Junto do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO), Tarcísio articula uma pressão no Senado para aprovar outro projeto nos moldes do apresentado por seu subordinado Derrite anos atrás. O PL, originalmente apresentado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) em 2011, tem texto que agora propõe acabar com o direito. Parado há um ano no Senado, o projeto relatado por Flávio Bolsonaro (PL) na comissão de Segurança, deve ser analisado pelos parlamentares no primeiro semestre e servir de mote político para as eleições.
Dos 12 estados analisados pelo JUSTA, apenas quatro destinavam valores para políticas públicas voltadas aos egressos — São Paulo, Ceará, Pará e Tocantins. O último criou em 2022 uma política pública voltada exclusivamente para essa população. Para a área foram gastos R$ 672 milhões.
Luciana avalia que a ausência de investimentos para os egressos completa o ciclo de violações impostas a quem é preso. “A falta de investimento em políticas para egressos é o final dessa cadeia de violações que faz, na verdade, com que o fim da pena muitas vezes se transforme ali, não só em mais uma violação, ou seja, o sujeito não vai ter os direitos garantidos em lei cumpridos e quando a gente fala de violação, a gente rigorosamente está falando de um grande paradoxo que a gente vive no nosso país”, diz.
Outro lado
A Ponte procurou o governo de cada um dos estados analisados na pesquisa. Apenas São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Pará e Rio de Janeiro responderam.
Minas Gerais e o Paraná contestaram os dados da pesquisa. No caso do estado mineiro, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) disse que a pesquisa desconsiderou o Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp).
“O estudo não levou em consideração a existência de um programa estadual voltado exclusivamente para esse fim, o Programa de Inclusão Social de Egressos do Sistema Prisional (PrEsp), desenvolvido desde 2003 e com investimento médio de mais de R$ 4 milhões anuais. Ou seja, Minas Gerais trabalha há 20 anos com um programa específico para o público egresso e que foi ignorado pela pesquisa em questão”, disse em nota.
A secretaria também afirmou que já havia discutido um possível erro nos dados com os organizadores da pesquisa em outubro do ano passado. “Em audiência pública realizada especificamente para discutir o tema na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), no dia 31 de outubro de 2023, representantes do Governo de Minas contestaram a pesquisa junto aos organizadores, esclarecendo sobre os erros e solicitando a correção de diversos dados”, afirma a nota.
No caso do Paraná, a assessoria do governo escreveu que os dados “estão equivocados” e que o estado tem complexos sociais com trabalho voltado aos egressos. Ainda conforme a gestão, foram investidos em 2022 R$4.226.000,00 para execução da política de egressos. O trabalho foi feito em 13 Complexos sociais e contou com 27 policiais penais, 4 agentes de execução e um técnico administrativo.
Em resposta às questões trazidas por ambos estados, o JUSTA informou que os resultados do estudo foram compartilhados com todos os estados “praticamente dois meses antes da pesquisa ser publicamente lançada”.
“Em ofícios enviados em 17 de novembro de 2023 às Secretarias da Fazenda de todos os estados analisados, foram apresentados os resultados e a metodologia da pesquisa, acompanhados do pedido para que fossem apresentadas eventuais dúvidas, sugestões ou críticas às informações ali apresentadas. Nenhum dos estados envolvidos havia respondido estes ofícios até a data de hoje”, escreveu a organização, em nota.
“No caso de Minas Gerais, por ocasião da audiência pública mencionada pela própria Sejusp, a metodologia da pesquisa já havia sido apresentada a representantes do governo. Conforme dissemos na ocasião, e reafirmamos no ofício encaminhado em 17 de novembro de 2023 à Secretaria da Fazenda mineira, não há, no Plano Plurianual ou na Lei Orçamentária de Minas Gerais em 2022, quaisquer programas ou ações orçamentárias voltados exclusivamente para a população egressa do sistema prisional em 2022. De toda forma, em nosso relatório é expressamente mencionada a existência de ”ações de governo mistas’, que contemplam a população egressa do sistema penitenciário, mas o termo ‘egressos’ aparece apenas de forma subsidiária a pessoas em cumprimento de alternativas penais, sem separação entre os públicos. Em todo o caso, de acordo com o recorte metodológico adotado, não houve investimento exclusivo em política para egressos em 2022 no estado de Minas Gerais.
Quanto ao Paraná, em que pese os dados trazidos apenas agora pelo Governo do Estado, apesar do ofício enviado em 17 de novembro de 2023 à Secretaria da Fazenda do Estado do Paraná, reafirmamos que – no recorte metodológico adotado – qual seja, análise do PPA e LOA daquele estado para o ano de 2022, não há quaisquer programas ou ações de governo voltados exclusivamente para a população egressa do sistema prisional do Paraná”, disse o JUSTA.
São Paulo, RIo de Janeiro e Pará também enviaram notas para a Ponte, contudo não questionaram o estudo.
A Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo respondeu, por nota, que “manteve e até ampliou os recursos para egressos”.
“A atual gestão manteve e até ampliou os recursos destinados a egressos, como foi o caso da verba destinada ao trabalho com pessoas egressas, que aumentou de R$ 13, 8 milhões em 2023 para R$15,04 milhões na Lei Orçamentária de 2024. Esse trabalho é feito por meio principalmente de 59 Centrais de Atenção ao Egresso e Família (CAEFs) espalhadas pelo estado que realizam ações voltadas para orientação e encaminhamento para programas de capacitação profissional e geração de trabalho e renda, aquisição ou regulamentação de documentos, apoio psicossocial, auxílio jurídico e orientação na retomada do processo de escolarização/educação”, disse.
O governo do Rio de Janeiro respondeu que vai investir R$ 799 mil em políticas para egressos e que investiu R$ 55,5 milhões em 2023 para a Fundação Santa Cabrini, vinculada à Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP), que promoveu formação para mais de 1.197 egressos.
“Quanto às políticas voltadas à egressos, a Secretaria de Administração Penitenciária possui termos de cooperação técnica voltados especificamente para o público. A secretaria vai investir R$ 799 mil em projetos voltados para serviços de atenção à pessoa egressa e R$ 712 mil, oriundos do Funpen, na implantação do serviço de atenção, em Niterói. A secretaria conta ainda com a Fundação Santa Cabrini. Vinculada à SEAP, a FSC teve destinação orçamentária, em 2023, de R$ 55,5 milhões. A verba foi investida em programas de qualificação e incentivos ao trabalho, resultando na formação de mais de 1.197 egressos e pela reintegração no mercado de trabalho de 1.262 profissionais em cumprimento de pena”, informou.
Já o Pará, por meio da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (Seap), destacou que vai investir neste ano, R$ 21 milhões para assistência integrada ao preso, interno e egresso.
“A Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Pará (Seap) informa que para 2024, o Orçamento Fiscal e de Seguridade Social é de mais de R$ 21 milhões para assistência integrada ao preso, interno e egresso. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup) informa que a distribuição do orçamento entre as Polícias Civil e Militar é feita conforme a natureza das missões realizadas por cada força, tendo a Polícia Militar com ações diárias de patrulhamento ostensivo e preventivo e ainda em razão do número do efetivo de cada órgão”, escreveu.
Fonte: Ponte Jornalismo