Pesquisa conduzida pelas Mães de Maio, Unifesp e a Harvard mostrou que mães e familiares sofrem com problemas físicos e psicológicos diante da perda de jovens por forças policiais
O estudo “Vozes de Dor, da Luta e da Resistência das Mulheres/Mães de Vítimas da Violência do Estado no Brasil”, lançado nesta terça-feira (16/7), em São Paulo, evidencia um problema urgente: mães e familiares de vítimas da violência do Estado precisam de acolhimento, que deve contar com a participação de mães-referência, ou seja, pessoas que já passaram pela mesma situação. Diante de uma polícia que não para de matar, essa reparação é essencial e deve vir na forma de política pública, aponta a pesquisa.
Feita conjuntamente pelo Movimento Independente Mães de Maio, a Universidade de Harvard e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a pesquisa visou entender as experiências de adoecimento de mães de vítimas da violência do Estado. Também foram analisadas a ação política e a transformação da vida dessa população.
A coordenação foi feita pela líder e fundadora do Movimento das Mães de Maio, Débora Maria da Silva, pela pesquisadora de Harvard Yanilda González e por Raiane Patrícia Severino Assumpção, atual reitora da Unifesp. A pesquisa foi realizada pelas pesquisadoras Edna Carla Souza Cavalcante (cofundadora e coordenadora do Movimento Mães da Periferia do Ceará), Nivia do Carmo Raposo (Integrante do Movimento de Mães e Familiares de Vítimas da Violência Letal do Estado), Rute Fiuza (coordenadora do movimento Mães de Maio do Nordeste) e das assistentes sociais Aline Rocco e Valéria de Oliveira.
Edna, Nivia e Rute são mães que tiveram a vida atravessada pela violência, assim como Débora. Edna perdeu o filho Álef Souza Cavalcante, assassinado na Chacina do Curió, no Ceará, em 2015. Rodrigo Tavares, filho de Nivia, foi assassinado pela milícia na Baixada Fluminense no mesmo ano. O filho de Rute, Davi Fiúza, foi considerado desaparecido após uma intervenção feita por policiais militares da Bahia.
Débora perdeu o filho Edson Rogério Silva dos Santos nos Crimes de Maio de 2006. O massacre cometido pela Polícia Militar de São Paulo e por grupos de extermínio ligados à PM deixou ao menos 600 mortos em um mês no estado.
As quatro pesquisadoras sociais e mães conduziram a pesquisa, analisando e coletando dados. As mães participaram de todas as etapas do projeto. Construíram conjuntamente as perguntas e os objetivos do estudo.
Durante o lançamento, Débora chamou a pesquisa de pioneira. “Mães pesquisando mães”, afirma. “O resultado é tão positivo, porque se fosse só o estudante de academia trazer esse resultado, não ia conseguir o que essas mulheres conseguiram”, completa.
Ela ressaltou que a pesquisa é um dos frutos do trabalho das Mães de Maio, que está perto de completar duas décadas. Neste período, o Movimento Independente já construiu ações como a nota técnica “Contribuições para implantação dos núcleos especializados de atendimento integral às vítimas de violência estatal”, documento fruto do trabalho de uma equipe multidisciplinar com assistentes sociais, psicólogos e profissionais do Direito movidos pela urgência de um atendimento aos familiares de vítimas de violência.
O Movimento conseguiu também implementar o projeto-piloto “Escute as Mães de Maio” por meio de verba de emenda parlamentar do então vereador de São Paulo e agora deputado estadual Eduardo Suplicy (PT). O projeto visou subsidiar a Lei Mães de Maio (PL 2.999/22) que estabelece um Programa de Enfrentamento aos Impactos da Violência Estatal aos Familiares de Vítimas e/ou sobreviventes.
Adoecimento
Um dos objetivos da pesquisa recém-lançada foi identificar como são as “vidas posteriores” ao luto induzido pelo Estado — o adoecimento, as sequelas físicas e psicológicas. Também foram investigadas a perda de autonomia e a resistência das autoridades do Estado na busca por justiça.
Nivia Raposo ficou feliz em participar do projeto. Ela diz que os movimentos sociais são muito procurados para servirem de objeto de estudo. Essa oportunidade serviu para mostrar que “o objeto de estudo também pode ser pesquisador”.
A mãe e pesquisadora vê como fundamental o trabalho de acolhimento feito por mães-referência. Nivia diz que, quando visita uma família adoecida, dedica o tempo para falar com todos os presentes. “Eu conheço os amigos do jovem, a avó, a tia, a prima, às vezes os sobrinhos”, fala.
A escuta não é só ativa, mas também afetiva, fala. “Você sabe o que aquela família está sentindo. Sabe exatamente tudo o que aquela pessoa está passando. Tudo que você sente, aquela pessoa está sentindo.”
A pesquisa se deu em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Ceará. A ideia era perceber lugares-comuns compartilhados por vítimas em cada um dos estados. As mães pesquisadoras sociais fizeram as escutas com outras mães acompanhadas de pesquisadores do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf/UNIFESP).
Nos encontros virtuais, as entrevistadas contaram sobre a trajetória de vida, as consequências da morte e as alternativas encontradas para sobreviver diante do luto. Em um segundo momento, de escuta, foram ouvidas cinco mães de cada estado.
Para as pesquisadoras, uma das tendências do Estado diante da violência policial é o negacionismo. Ele se manifesta na defesa da atuação policial, na criminalização da vítima e no trato de casos sistemáticos como se fossem isolados.
Relatos de violência
O relatório é repleto de relatos que costuram e exemplificam o que a pesquisa quer demonstrar. Quando concluem que nos quatro estados as forças policiais, em muitas ocasiões, se assemelham mais a grupos de extermínio do que polícias, trazem o relato de uma mãe da Bahia.
“[…] quando ele foi para abrir o portão, saiu esses homens de dentro do carro, fortemente armados, com rosto coberto. E quando saiu já foi com aquela arma em punho, e ele se apavorou, não conseguiu nem mais abrir o portão. Saiu correndo e eles atrás atirando e a vizinhança toda pedindo, ‘o que é isso, ele não é ladrão, não é marginal, deixe ele,’ e eles atrás”, contou a mãe às pesquisadoras.
O grupo também verificou que, após as mortes, existem tentativas de intimidação. Muitos dos relatos contaram situações do tipo. “[…] a casa da minha mãe foi invadida várias vezes pela polícia, quiseram levar a minha mãe como traficante, meu sobrinho foi agredido, então, assim, mudou a minha vida”, disse uma familiar do Ceará.
Outro aspecto é a criminalização das vítimas. Segunda a pesquisa, essa tentativa está presente não só no relato dos policiais, mas também no tratamento dispensado aos familiares.
“Quando chegou no IML foi a mesma coisa que estar na delegacia. Perguntou como ele era dentro de casa, se ele era agressivo, se ele me batia, se ele usava droga, se ele se envolvia [com o crime organizado]… foi uma audiência tipo quando uma pessoa é presa, era um juiz e uma mãe réu por ter um filho negro, ter tatuagem, estar sem documento, foi levado como bandido”, contou uma mãe do Rio de Janeiro.
Descaso
Investigações longas e sem resultados são outro ponto evidenciado na pesquisa. “Eu busquei muitas informações lá em Salvador, muito tempo atrás, no Ministério Público, delegacia, Polícia Civil, mas é tão desgastante, tão cansativo que não foi feito nada, nada foi resolvido”, contou uma mãe da Bahia.
A pesquisa mostra que o descaso e a falta de resposta levaram muitos familiares a partirem em investigações próprias. No relatório, é apresentado o caso de uma mãe do Rio de Janeiro que, com a família, localizou o corpo do filho. A Polícia Civil, no entanto, se recusou a ir ao local recolher os restos mortais.
Diante disso tudo, as mães são adoecidas. Esse processo, definem as pesquisadoras, é social e político. O impacto é de longo prazo e afeta o bem-estar físico, mental e social das famílias.
Uma das coordenadoras da pesquisa, a reitora da Unifesp, Raiane Assumpção, explica que o estudo partiu da concepção de que o processo de adoecimento é uma consequência do trauma gerado pela violência do Estado. Assim, a causa é social e não biológica.
Isso é demonstrado pela pesquisa, explica. As pessoas adoeceram reiteradamente. Primeiro com a perda do filho, depois com a ausência de resposta do sistema de Justiça e, subsequente a isso, uma injustiça, motivada muitas vezes pelas lacunas em investigações ou pela precariedade da apuração. Outro aspecto é a espetacularização ou sensacionalismo com que os casos são tratados por veículos de imprensa. O resultado é que o trauma que as mães vão vivendo gera sequelas físicas e psicológicas.
As mães têm problemas físicos, ficam incapacitadas, sofrem com depressão, uso frequente de medicação, hospitalização e até mesmo morte precoce.
“[…] eu tô doente, eu tô falando agora, sem tá cochilando, sem tá dormindo, porque eu não tomei o remédio”, contou uma mãe da Bahia.
Raiane destaca ainda a importância do acolhimento ser feito por mães referência. Diz que, ao longo da pesquisa, muitas das entrevistadas falaram em fortalecimento de laços por poder contar com alguém que viveu o mesmo que elas.
Esse é um dos pontos presentes nas recomendações do estudo. “Nas políticas públicas tem que ter mães que tenham vivido esse processo para fazer um acolhimento que faça sentido para quem está sendo acolhido”, diz.
Políticas públicas
O estudo aponta também que uma das estratégias para lidar com a morte é a participação em movimentos sociais que reúnem mães e familiares de vítimas. Para as pesquisadoras, ao pertencer aos grupos é possível identificar o processo de compreensão mútua baseada na dor e nas vivências compartilhadas. “Aprendi que chorar sozinha é muito ruim. A gente tem que chorar juntas, entendeu?”, disse à pesquisa uma mãe do Rio de Janeiro.
A pesquisa conclui que a reparação é uma afirmação da dignidade das vítimas e da luta das famílias. São elencadas medidas que podem embasar políticas públicas futuras com esse objetivo.
Entre as recomendações estão investigações rápidas, efetivas, completas e imparciais; tratamento e reabilitação das vítimas e familiares seguindo o acolhimento executado na pesquisa (com a participação de mães referência); homenagem às vítimas; uma garantia de não repetição assegurando o controle das forças militares.
Fonte: Ponte Jornalismo