Há uma grita batendo à porta da sociedade e ela diz que a necessária, urgente e inadiável regulação do ambiente das redes sociais, na abjuração de fake news e discursos de ódio, pela via da criminalização dessas condutas, significaria uma peia à liberdade de expressão.
Há muita gente defendendo essa ideia. Alguns ignorantes que sequer imaginam o alcance do próprio conceito (como sói ser nos ambientes insalobros que a cadela fascista corrompe); outros tantos, com conhecimento de causa e alcance pragmático, cujo interesse concreto repousa na ambiência de ódio que o fascismo espraia e não na liberdade em si – já que abominam este conceito mundano.
E há um jornalista estadunidense que eu respeito muito (Glenn Greenwald) e que vive há muitos anos no Brasil e é um dos ícones de minha geração. No ponto temático em destaque, Greenwald, ao defender a liberdade de expressão sobre todas as coisas, deixa de estabelecer a diferença básica entre expressão (racional e fruto da interação do ego com o superego) e aparência de expressão (veículo político utilizado pela extrema direita contemporâneo).
A mentira não pode ser compreendida enquanto uma expressão, naquilo que mais se aproxima do ego que do superego do mentiroso e, por isso mesmo, deve ser interpretada enquanto tentativa de expressão, na medida em que não se perfaz no ambiente liquefato da racionalidade, porquanto avança na seara do irracional com objetivos enviesados.
Vou tentar me explicar melhor. Para tanto, voltemos a necessária interação do ego, filosoficamente alinhado enquanto mediador das exigências do id (mundo interior) com o mundo externo (sociedade), através do superego – que seria a moralidade, as regras de conduta…
Passa que a função precípua do superego é inibir a satisfação do id (mundo interior do cidadão), em polo de convívio com as regras de vivencia que a sociedade adota. Assim, a liberdade de expressão não pode ser inserida em um contexto conflitivo qualquer pugnado pelo id, naquilo que este choque negaria a existência do superego, permitindo à psique humana agir sem consequência.
Para melhor expor o caso, vou chamar em ajuda aqueles que são, direta e indiretamente, responsáveis por minha formação cidadã – os Gregos…
Destarte, parcela grandiosa dos ideais políticos contemporâneos tem nascente na Grécia antiga, a quem devemos os meandros da organização sócio política do próprio estado.
Os gregos foram felizes ao estabelecerem um liame existencial entre os conceitos de estado e sociedade, naquilo que para os descendentes de Sócrates não haveria diferença entre ambos.
Assim é que a cidadania, enquanto ideário, estaria presente tanto em um (estado) quanto em outro (sociedade), na medida em que o grego via no estado (sociedade) sua própria razão de existir, o que lhe demandava a urgência de se integrar à vida política de sua sociedade (estado).
Fossem os gregos (antigos) adeptos de redes sociais (da forma com que esta valença está compreendida em nossos dias), bem provável que sua condição cidadã, ao refletir o ideário da sociedade estado, automaticamente impediria a propagação de fakes e a proliferação de haters – naquilo que o exercício da cidadania era um limite interativo social, acordado tacitamente, em nome do bem-estar.
Glenn se equivoca ao pressupor que o exercício livre do interesse odioso e mentiroso não agride a proteção social, suposto que a racionalidade que tutela a liberdade de expressão não se divisa na irracionalidade da mentira e do ódio.
Assim é que a formação cidadã dos povos reclama um limite longilíneo da conduta, naquilo que o outro sempre seria o objeto de nossa interação social, bem assim o destinatário de nossa racionalidade e não dos interesses políticos que tutelam haters e fakes.
Noves fora, não estou sugerindo que a sociedade grega seria perfeita, naquilo que o ideário de perfeição é um conceito sobre humano (e, portanto, imortal), alinhado à uma existência sem livre arbítrio e outras proezas mais.
O meu ponto é simples e objetivo: a racionalidade imperava nas relações sociais (que também seriam estatais) tiradas entre os gregos, em ordem a impedir (naturalmente) a propagação da mentira e a cultura de ódio.
Não vivemos essa harmonia civilizatória em nenhum lugar do mundo, entretanto…
Assim é que a racionalidade dita regra de conduta no convívio e sua recepção significa um reclamo natural de integração política na sociedade, projetando limites comportamentais. Quanto mais irracional o momento histórico (o nosso é muito irracional) mais se anuncia necessária a regulação do convívio.
À guisa de curiosidade geopolítica, a Constituição Cubana recepciona esse conceito – precisa de um lenço para secar suas lágrimas de crocodilo, oh incauto que replica haters odiosos contra Cuba?
Noves fora a história antiga (cujo desconhecimento é pai e mãe da ignorância que deixa tanger o gado contemporâneo) e a grandeza conceitual da Carta Constitucional Cubana, não podemos pressupor que a liberdade de expressão (cláusula pétrea cidadã) se sobreponha ao universo do outro.
Isso devemos ao id, bem entendido nos lindes da teoria psicanalítica que o abraça, enquanto uma das três estruturas do aparelho psíquico, naquilo que identifica a fonte de energia psíquica cara à libido. Aqui interage o desejo inconsciente, funcionando/ na trilha do prazer enquanto catalisador satisfativo das fantasias.
O id seria o inconsciente em polo de convívio com o superego – daí a liberdade de expressão limitar-se ao espectro racional da marcha civilizatória que o homem (e a mulher) do século XXI trilham em balanço com a sociedade e os costumes.
Percebe-se, assim, uma sensível diferença entre a liberdade de expressão (sempre limitada ao racional, naquilo que fruto de interações sociais estabelecidas no equilíbrio do id) e a tentativa de expressar fake news e discursos de ódio, por interação do sistema legal que regula condutas em um grande pacto social.
Não fosse assim a proliferação de mentiras científicas (terraplasmo + pauta anti-vacina + manipulação da história…) estaria protegida da regulação do estado sobre o tema, naquilo que bastaria ao mentiroso evocar sua liberdade de expressão para evitar ser enquadrado pela regulação estatal.
Bem por isso a liberdade de expressão tem termo na lei – que seria a regulação contratada da vida social – em ordem a sobrepor a racionalidade de bem viver sobre todas as outras coisas que a vida empodera, enquanto circunstâncias de um mundo que caminhou à margem das idiossincrasias que viver reflete.
E onde se aloca o controle de liberdade? Na tentativa de expressar qualquer coisa que não seja racional, suposto que entre a verdade e a mentira há um hiato que deságua na salvaguarda social dos povos.
Civilização baby, civilização – eis o pacto que a mentira e o ódio desafiam e eis o porquê a peia estatal que os subjuga não colidir com a liberdade de expressão.
Neste ponto, vai muito mal aquele que acredita ser ungido pela existência liberta de qualquer controle, em ordem a propagar livremente mentiras e vomitar ódio.
A vida segue sendo mais!
Saudade Pai.
João dos Santos Gomes Filho para o Canto do Locco
João Locco
João dos Santos Gomes Filho, mais conhecido pelo apelido João Locco. Advogado, corintiano, com interesse extraordinário em conhecer mais a alma e menos a calma.