No princípio era a mata. Os rios, as árvores milenares, a fauna. E, embrenhados na natureza, Kaingangs, os habitantes coroados da floresta. Até que outra aventura começou. Nos tumultuados anos 20 do século passado, os forasteiros carregando sonhos de prosperidade, cruzaram o Tibagi. Destino esperado para um sertão inóspito. Afinal, éramos e somos um pedaço da América. E o que é a América, se não um lugar onde a ambição pôs os olhos sobre terras, rios e florestas? E, pelo bem ou pelo mal, os ambiciosos vieram em busca da riqueza.
A causa do espanto, no entanto, não foi o nascimento da metrópole a partir de uma clareira na floresta e precários ranchinhos de palmito. Mas sim a velocidade vertiginosa com que o sonho se realizou.
Basta lembrar que expedição que liderou a fundação do Patrimônio Três Bocas era composta, entre outros, por um jovem de pai inglês (Craig Smith), um russo (Razgulaeff), um brasileiro (Loureiro) e um cozinheiro chamado Froelich. O grupo prenunciava a amálgama de culturas que se fundiriam na construção da cidade ainda sem nome. Lembremos que o lugar que seria oficialmente batizado como Londrina em 1934 era apenas uma imagem na mente dos pioneiros. Mas já antecipava a inquietação que teria na sua massa de sangue.
Uma vontade profunda de não ser comum e associar seu nome a títulos superlativos: “Capital mundial do café”, “Maior crescimento vertical do Brasil”, “O aeroporto com o terceiro maior número de pousos e decolagens do país”. E, desde sempre, vendo a si como algo brilhante, orgulhosa em ser no que se transformava.
E essa vontade disseminada de prosperar refletiu em tudo. Na arquitetura, por exemplo, misturavam-se as casinhas de madeira, então material abundante na mata e as novas construções robustas de residências e prédios públicos. Andar pelas ruas da cidade hoje é encontrar-se com a arquitetura modernista de Vilanova Artigas, nas formas onduladas da rodoviária (hoje museu de artes); nas linhas retas do edifício Autolon ou na imponente fachada curva do cine teatro Ouro Verde.
Impossível ser indiferente ao edifício América, espécie de totem dos tempos áureos do café, com seus inúmeros escritórios de corretagem. Gente dos quatro cantos da terra provando da bebida, fechando negócios e espalhando histórias de enriquecimentos fabulosos. E sobre o prédio, o “relogião”, versão pé vermelha do Big Ben londrino.
Mas, as cidades são muito mais que histórias de prosperidade ou plataformas onde deslizam carros, pessoas ou se erguem construções. Elas são convergências de afetos, encontrados nas ruazinhas cheias de vidas, nas emoções armazenadas nas casas e quintais. São patrimônios impalpáveis, que ao longo dos anos vão se sedimentando, formando camadas de histórias que impregnam a memória.
Lembramos do vizinho de muitos anos que passava pontualmente às seis da tarde; sentimos o aroma do café coado pela senhora da frente, que perfumava as manhãs; a troca de receitas entre donas de casa no fundo do quintal; a tristeza da jovem que por infortúnio perdeu o marido. Essas tramas miúdas, cotidianas, de amor e dor é que vão amarrando nossas vidas e nos humanizam. Até maus sentimentos que nós, humanos que somos, cultivamos mesmo sem querer. Uma cidade é o abraço apertado entre as ruas e as nossas vidas.
Nelson Rodrigues não gostava de viajar. Principalmente para a Europa. O genial cronista sentia-se diminuído com a larguíssima história do continente. Dizia que uma simples colherzinha, na Itália, estava impregnada de pelo menos mil e quinhentos anos. Os londrinenses, no entanto, não se inibem por ter sua história tão curta. Pelo contrário.
Os noventa anos da cidade, que na infinita linha do tempo significa tão pouco, foi compensada pela intensidade do brilho. Numa comparação grosseira, se a história do mundo é uma tapeçaria, com múltiplas cenas, mas desbotada pelos séculos, a história de Londrina é uma tela, com brilho e cor intensos, que impacta e alegra a vista.
Uma cidade que viu e sentiu a alegria da prosperidade, dos tempos em que nosso ouro era verde e que também amargou a destruição dos cafezais pela geada negra de 1975, que se reinventou e segue em frente com o mesmo espírito de inovação e pioneirismo, merece um gigantesco parabéns. E muitos e muitos anos de vida.
Texto: Marco Antônio Fabiani, cardiologista