Governador pediu a governo federal que remova “índios paraguaios” que estariam ocupando propriedade privada de fazendeiros; mas na verdade são os fazendeiros que estão ocupando terras indígenas
O governador Ratinho Júnior (PSD) vem cobrando nos últimos dias do governo federal a retirada de indígenas que ocuparam no mês passado áreas no Oeste do Paraná. Em declarações à imprensa, chegou a chamar os ocupantes das terras de “índios paraguaios” e disse que não aceitará que eles “invadam” propriedades privadas no Paraná. No entanto, as áreas ocupadas fazem parte de uma Terra Indígena delimitada pela Funai em 2018.
Apesar de definida pelo governo federal, em abril do ano passado a Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá (nos municípios de Altônia, Guaíra e Terra Roxa) tinha 60% de sua área ocupada pelo agronegócio, segundo levantamento feito pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). A demarcação da área (uma compensação pelas terras indíeganas alagadas com a construção de Itaipu, nos anos 1980) vem se arrastando há 40 anos e voltou a tramitar neste ano no Supremo Tribunal Federal – o que significa que, longe de serem “invasores”, os indígenas podem ser os verdadeiros proprietários da terra hoje ocupada por fazendas.
Na segunda-feira, Ratinho Júnior participou de uma videoconferência com o ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, para cobrar do governo federal a realização de uma operação de reintegração de posse, já que fazendeiros da região obtiveram decisões favoráveis na Justiça. Ele disse que, caso o governo federal não atue para reintegrar as áreas, o governo do Paraná poderá recorrer à Justiça e promover a desocupação com forças estaduais.
De acordo com o CGY, no entanto, “todas as áreas de ocupações recentes estão totalmente inseridas dentro do perímetro delimitado pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá”. A demarcação das terras ainda não foi feita, mas a delimitação da área de 24 mil hectares está vigente, informou o CGY, organização que congrega coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste.
A área delimitada ocupa 5,83% do território de Altônia (1,4 mil hectares), 34,4% do município de Guaíra (82 mil hectares) e 59,5% dos limites de Terra Roxa (14,2 mil hectares). O Território Indígena, em uma área de fronteira com o Paraguai, foi reconhecido pela Funai em despacho do dia 15 de outubro de 2018.
Segundo o relatório “Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá”, divulgado pelo CGY em abril de 2023, 80% das áreas delimitadas nos municípios de Guaíra e Terra Roxa estão ocupadas pelo agronegócio. Em abril do ano passado, cerca de 3 mil indígenas do povo Avá-Guarani viviam na região em meio a lavouras de soja, milho e eucalipto. O CGY denunciou casos de intoxicação por agrotóxicos e ameaças à biodiversidade.
Conflitos
No início do mês passado, os indígenas iniciaram um processo de expansão de suas aldeias na região, o que gerou conflitos, com queima de barracos e alimentos. Os indígenas teriam sido impedidos de utilizar o Samu e alguns teriam sido feitos como reféns por produtores rurais. Uma tropa da Força Nacional foi enviada para a região no dia 17. Segundo o procurador-geral do Estado, Luciano Borges, a Justiça já concedeu sete liminares de reintegração de posse e cinco interditos proibitórios (que impedem a ocupação de áreas) em favor dos produtores rurais.
A Itaipu Binacional anunciou que pretende adquirir uma área na região para acomodar os indígenas. “Existe, sim, o compromisso da empresa na aquisição de áreas que possam atender às necessidades das comunidades Avá Guaraní”, informou em nota o desembargador Fernando Antonio Prazeres, membro da Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Os procedimentos necessários para a compra das áreas estão sendo ultimados e, em breve, poderão ser disponibilizadas. A Itaipu Binacional assume, ainda, o compromisso de continuar na sua política de dar suporte institucional às comunidades indígenas, de modo a garantir a elas a infraestrutura necessária para a ocupação das referidas áreas”.
O desembargador é um dos integrantes do Grupo de Trabalho criado na semana passada pela prefeitura de Terra Roxa para buscar soluções para o problema. Além dele, o Grupo tem representantes dos indígenas, das três prefeituras envolvidas, do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), da Funai, do Ministério Público Federal e dos proprietários rurais.
O MPI deverá pedir a prorrogação da presença da Força Nacional por mais 90 dias. “A instabilidade gerada pela lei do marco temporal (lei 14.701/23), além de outras tentativas de se avançar com a pauta, como a PEC 48, tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas”, afirmou o MPI em nota.
“Índios paraguaios”
Em entrevista na terça-feira (30 de julho), Ratinho Júnior ameaçou recorrer à Justiça para retirar os indígenas, a quem chamou de “índios paraguaios”, da área. Segundo ele, seu governo fez 120 reintegrações de posse no últimos cinco anos. Além do ministro Paulo Teixeira, ele também conversou com representantes do ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, e do Incra.
“O que acontece na fronteira é que o estado é impedido de fazer essa reintegração, porque região de fronteira compete ao governo federal e à Polícia Federal”, disse o governador. “Deixei muito claro que, se o governo federal não fizer essas reintegrações, o estado vai ser obrigado a entrar na Justiça para ter o direito de fazer essa reintegração de posse, porque nós não vamos admitir que índios paraguaios invadam terras privadas aqui no estado do Paraná”.
Na quarta-feira (31), o Departamento de Antropologia e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) emitiram nota de repúdio à fala do governador. “Esta fala desconsidera a história e os direitos dos povos indígenas brasileiros, além de reforçar estigmas e preconceitos que alimentam a violência contra esses povos”.
De acordo com a nota, os conflitos na região se devem à demora na demarcação da Terra Indígena, o que vem sendo impedido por ações na Justiça. “O atual conflito se agrava devido à demora na demarcação da Terra Indígena Guasu Guavirá, historicamente ocupada pelos Avá Guarani. A região tem sido palco de conflitos e violência, e os remanescentes deste povo têm enfrentado dificuldades, incluindo remoções forçadas e separação de famílias”.
A Funai retomou o processo de demarcação no ano passado, o que gerou duas ações no Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4), uma delas movida pelo município de Guaíra. “A ameaça de uso de força policial em ações de reintegração de posse não apenas viola os direitos fundamentais dos povos indígenas, mas também exacerba o clima de tensão e violência na região. Apelamos às autoridades para que respeitem os direitos dos povos indígenas e reiteramos nosso apoio às comunidades Avá Guarani de Guaíra e Terra Roxa e nos solidarizamos com sua luta por reconhecimento e justiça”, finaliza a nota.]
Fonte: Jornal Plural