Na última semana, Batalha da Praça sofreu abordagem truculenta; ação não é novidade e, para participantes, atinge a cultura negra e periférica
Na última quinta-feira, quando jovens começaram a chegar à praça Vila Nova, em Londrina, para uma das batalhas de rima que acontece toda semana no local, viaturas da Polícia Militar encostaram e abordaram todos os presentes. Deram o famoso “enquadro”. Não foi a primeira vez e a Batalha da Praça, que acontece há cerca de cinco anos, não é a única visada pelas forças de segurança e por parte da população.
“A repressão acontece pelo fato da gente usar a liberdade de expressão a favor das nossas causas e não da causa deles; a gente tem uma força, então eles precisam reprimir a gente. Se fosse uma abordagem em qualquer outro local eles não teriam insultado os meninos, não teria mandado calar a boca. Sempre acontece quando é direcionada a esse público, pessoal sabe disso e isso revolta muito os meninos”, diz Felipe Garza, organizador da Batalha da Praça.
Ele conta, ainda, que a abordagem mudou quando advogados chegaram. “A gente não consegue fazer acontecer se não tiver alguém com nome. Por exemplo, a abordagem tomou completamente outra proporção quando os advogados chegaram, então isso machuca a gente que está ali toda quinta-feira, fazendo o bagulho acontecer e as pessoas sabem que a gente tá ali; muitas não denunciam e muitas denunciam toda semana”, afirma Garza.
Assista a uma batalha de rima dos participantes da Batalha da Praça aqui.
Mc Adilsin já estava na praça no momento da abordagem. “A gente chegou já tinha duas, três pessoas na praça, nisso chegou uma viatura, porque, se não me engano, foi denúncia de algum vizinho. Visão de algum vizinho que não entende nada. Era um policial e uma policial e eles enquadraram uma pessoa que tava mais próximo deles. Depois eles começaram a chamar o pessoal que tava mais distante pra enquadrar. Depois acionaram mais outras viaturas, cinco ou seis. Isso já era quase 10 horas. Graças a Deus não partiram pra uma atitude mais rude”, relata Adilsin.
A reportagem pediu posicionamento da PM sobre o assunto, mas não recebeu retorno até o fechamento da reportagem.
Preconceito leva à repressão
Para Adilsin, a cultura hip hop ainda é vista de forma muito distorcida pela sociedade. “É algo que já é implantado nas cabeças das pessoas, pelo fato de muitas falarem que o rap, hip hop é de marginal, bandido, que só tem maconheiro. Isso implantado tanto na polícia quanto na sociedade. Acham que as pessoas estão reunidas ali só pra usar alguma coisa e não querem nada da vida. Quem não sabe o que é acaba indo no efeito manada. Pela ignorância também de não saber e pelo preconceito”, opina.
Para o Mc, a característica de denúncia do rap e o fato de ter nascido nas periferias mexe com estruturas que a sociedade não quer modificar.
“O rap toca na ferida de muita coisa, fala muito a verdade, acaba ferindo muita coisa da sociedade, principalmente da elite, do pessoal um degrau acima de nós no poder. O rap dá voz pra pessoas que vieram de baixo, luta contra preconceito; as batalhas é uma expressão da periferia, que tá ali pra transformar”.
Adilsin não gosta de generalizar as atitudes da polícia e acredita que muitos “fazem o trabalho deles”. “Mas muitas atitudes dos caras que não é da hora, atrasa nosso movimento. Você vê ali toda quinta-feira um monte de jovem reunido ali, ao invés de chegar perguntando, chega já ‘mão na cabeça, vagabundo’. Às vezes a gente fala boa noite e os caras se sentem ofendido”, conta ele.
Depois da ação truculenta, a batalha acabou acontecendo. “Teve pessoal querendo vazar e eu falei ‘acho que não tem que vazar, tem que fazer o movimento, porque a gente não é resistência, não trabalha em cima disso?’”.
Dificuldade de regularização
Em novembro de 2022, W Mc, organizador da Batalha da Concha, convocou um protesto de produtores culturais contra as dificuldades enfrentadas por eles para realizar as batalhas. Na época, ele contou à Lume que iniciou a batalha em 2008 e precisou transferir da Concha para o Zerão, alguns anos depois, por conta de abordagens e outras dificuldades impostas tanto pelas polícias quanto pela população do entorno.
Em 2022, eles retornaram para a Concha em função da reforma do Zerão e, novamente, surgiram as mesmas dificuldades, inclusive com corte de energia para tentar impedir o movimento.
Felipe Garza, organizador da batalha da Praça, diz que a situação era mais difícil quando eles não tinhavam alvará. Hoje, a dificuldade está na renovação. Ele acredita que a prefeitura dificulta o trabalho dos produtores culturais da periferia.
“(O alvará) é a única defesa que a gente tem, porque esse tipo de comportamento (da polícia) é frequente. A gente sabe que somos vulneráveis e eles sabem muito mais que a gente. Para se tirar o alvará é muito burocrático, muito difícil pessoas que organizam batalha deixarem seu serviço para ir até a prefeitura. E isso desgasta muito a gente. A gente tenta fazer o melhor possível com o que a gente tem.”
A importância das batalhas
Ligia Braga, conhecida no meio cultural como Cleópatra, participa de várias batalhas. Ela explica que o movimento hip hop modifica vidas na periferia.
“As batalhas de rima começaram nos Estados Unidos num movimento de resolver brigas entre gangues que causavam inúmeras mortes. Através das batalhas de rima diminuíram extremamente os índices de violência nessa época e o que continua até hoje. Existem inúmeros estudos acadêmicos que testaram e provaram que a juventude periférica, principalmente negra, ter acesso à arte, à cultura – especificamente do hip hop – diminui índices de criminalidade, de violência, de abuso de substâncias, de drogas, de baixa escolaridade.”
Para Lígia, as batalhas são criminalizadas justamente por serem veículos de expressão da juventude periférica, majoritariamente, negra, que está na mira do estado.
“Foi negado por muito tempo o falar, o se expressar, para certos corpos e são esses corpos que o rap atinge, através desses corpos a gente se manifesta, a gente atua e ensina as pessoas a falarem sobre o que elas sentem, sobre os sentimentos delas, sobre as emoções delas, já que o rap faz uma transformação social, psíquica, emocional e física na vida de um indivíduo – e econômica, muitas vezes”, destaca.
Lígia destaca que os principais temas discutidos em batalhas de rima são críticas sociais “de uma realidade e de vivências de corpos que sofrem por causa do estado brasileiro.”
Mc Adilsin, que começou a rimar aos 14 anos, diz que hoje, aos 20, percebe toda a mudança trazida pelo rap e pelas batalhas para sua vida.
“Nunca esperava que seria um rapper. O rap foi algo que apareceu, simplesmente me tornei com o tempo. Me trouxe muita perspectiva do que eu queria pra mim. Fez eu olhar pra mim, pro Adilson, saber reconhecer…comecei a explorar muita coisa dentro de mim, meus medos, minha ansiedade, e também lidar com isso. Me trouxe muito aprendizado, muitas conexões, muito conhecimento – coisas que eu às vezes não conseguia aprender muito na escola, pelo rap me trazer mais conexão. O rap me transformou, na real. Muita perspectiva do que é o mundo, a sociedade, do que eu sou”, conclui.
Batalhas podem se tornar patrimônio cultural do PR
A deputada estadual Ana Julia (PT) apresentou projeto de lei (PL 241/2023) que confere o título de patrimônio cultural do Paraná às batalhas de rima (saiba mais aqui).
Para Lígia Braga a medida, embora não solucione o problema, é de extrema importância. “É muito importante porque finalmente as pessoas estão olhando pra gente com olhar de dignidade e de valorização, uma coisa que já deveria ter acontecido há muitos e muitos anos. E mesmo com esse olhar de valorização e dignidade a gente ainda é tratado como criminoso, como violento aos olhares do estado brasileiro, da polícia militar e da guarda municipal de Londrina, da prefeitura de Londrina”.
O projeto de Ana Júlia foi aprovado em primeira votação e segue para segunda análise na Casa.
Fonte: Rede Lume