Sem amarras ideológicas, líderes dos 12 países sul-americanos buscam consenso para fortalecer um bloco de negociações, com crise argentina e reaproximação com a Venezuela, como temas sensíveis da reunião
Após oito anos longe dos vizinhos, o Brasil devolveu a integração sul-americana ao centro da pauta. Assim como foi o maior protagonista do afastamento dos parceiros, desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, rompendo relações de imediato com a Venezuela e esfriando o contato com governos de esquerda, o Brasil resgata seu papel de liderança no desafio da construção de um bloco continental.
Dos 12 vizinhos continentais, apenas o Peru não enviará seu chefe de Estado. O país vive uma crise institucional e política desde que o então presidente, Pedro Castillo, foi destituído e preso, em dezembro do ano passado. No lugar de Dina Boluarte, vice de Castillo, vem o presidente do Conselho de Ministros, Alberto Otárola.
A propósito, a crise peruana é mais uma das que se espalham pelo continente e podem ser pautadas no encontro de cúpula. A instabilidade política e econômica atinge praticamente todos os países do subcontinente, e encontros bilaterais podem ser promovidos para discutir temas específicos entre os países.
Unasul e Prosul
Nos últimos anos a América do Sul viveu uma segunda onda progressista, com eleição de nove presidentes de esquerda, dentre 12 países, culminando com a posse do presidente Lula. Apesar disso, por falta de liderança e articulação, nenhuma organização multilateral foi acionada como fórum para debater problemas comuns. A União de Nações Sul-Americanas (Unasul), criada em 2008, tinha essa pretensão, mas está desativada desde que Bolsonaro chegou ao poder, em 2019.
O então presidente via a entidade como um bloco de governos de esquerda, e aderiu à articulação de Colômbia e Chile para a criação do Prosul, um fórum de países governados pela direita, que ascendeu ao poder em meados da década passada.
Desta forma, a iniciativa de Lula, de visitar vizinhos logo no início de governo, reunir uma cúpula regional, e ainda prever um encontro de países amazônicos, em agosto, mostra que a página foi virada e começa um novo ciclo para a América do Sul.
A maturidade de Lula também propõe avançar na integração sul-americana de uma forma mais pragmática, evitando o risco da ideologização que contaminou o processo anteriormente. A todos, governos de esquerda ou direita, interessa um bloco forte em defesa de seus interesses. E não apenas para os atuais governos, mas para o futuro. Lula mira no modelo da União Europeia, ao apontar como sonho a adoção até de uma moeda comum no continente.
Por isso, é tão importante fazer sentar juntos todos os presidentes, com suas divergências, para tratar de assuntos comuns. Somente a partir deste paradigma, é possível pensar um desenho institucional de entidade multilateral capaz de representar a todos.
Como explicou a secretária de América Latina e Caribe do Itamaraty, embaixadora Gisela Padovan, ao apresentar a pauta do encontro de cúpula: “Nós temos a consciência de que há diferenças de visão entre os vários países, diferenças ideológicas, e, por isso mesmo, consideramos um começo: que os países se sentem à mesa e dialoguem, busquem pontos em comum para retomar esse movimento tão importante.”
Agendas comuns
Hoje, mais do que discutir se um governo deve focar no ajuste fiscal ou em gastos sociais, a maior preocupação é com o cenário de baixo crescimento em todos os países. Outro elemento comum é a dificuldade de muitos governos com sua base parlamentar.
Não é apenas o Brasil, que enfrenta a dificuldade de construir uma correlação de forças que o apoie no Congresso. A disputa política entre um governo progressista e um parlamento majoritariamente conservador dificulta a implementação de políticas públicas prometidas durante a campanha eleitoral.
Lula faz questão de deixar a pauta do encontro aberta. Mas apresentará aos vizinhos, além da proposta de criação de uma entidade que represente o subcontinente, questões que são tratadas como prioridade pelo governo brasileiro. Uma delas é a oferta de mecanismos de ajuda econômica à Argentina — segunda maior economia da América do Sul, que vive uma severa crise econômica e hiperinflação, que comprometem a estabilidade do continente e sua capacidade de se integrar economicamente. Para Lula, países que mantêm grande ligação comercial com os argentinos devem criar mecanismos de ajuda, principalmente na forma de financiamento de exportações.
A reinserção da Venezuela na rotina diplomática e comercial da região é outra questão prioritária, já resolvida no Brasil com a reabertura dos consulados. A irresponsabilidade do governo anterior deixou mais de 20 mil brasileiros sem assistência consular. Outro problema grave foi a suspensão das negociações da dívida que a Venezuela tem com o Brasil, já que sequer havia um embaixador para isso. A ruptura também atingiu o comércio e as empresas parcerias, que despencou de US$ 6 bilhões para pouco mais US$ 1,2 bilhão.
A expectativa, no entanto, é que os presidentes também tematizem agendas comuns, como a integração física dos países da América do Sul por meio de rodovias, ferrovias e dutos; políticas de enfrentamento ao crime organizado nas regiões de fronteira e convergências em relação aos movimentos migratórios no subcontinente.
Venezuela
O primeiro a chegar à capital brasileira foi o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, na noite de ontem. O encontro bilateral com Lula foi amplamente divulgado pela importância simbólica do retorno do governo venezuelano ao debate da integração.
A presença de Maduro, criticada pela extrema-direita, revela a diversidade ideológica que Lula procura agregar, de forma pragmática, demonstrando o contraste com o governo anterior.
Argentina
Parte do discurso do argentino Alberto Fernández foi transmitido para a imprensa. Ele reforçou a necessidade da construção de uma integração subcontinental e, dizendo que “não podemos aceitar os bloqueios na nossa região”, referindo-se às sanções contra a Venezuela. Na sequência, porém, Fernández disse que a democracia na América Latina é um valor que deve ser preservado.
“A construção da democracia e dos direitos humanos na América Latina é uma luta que custou a vida de muita gente, e não podemos perder isso”, disso o argentino.
Paraguai
O Paraguai tem uma pauta estratégica com o Brasil, que é a comercialização da energia da hidrelétrica de Itaipu, uma sociedade dos dois países. O acordo que previa a exclusividade brasileira na aquisição da geração excedente do Paraguai expirou, e a binacional entra agora em regime de economia de mercado.
Uruguai
O Uruguai, por sua vez, é o país mais resistente a acordos no âmbito do Mercosul. O vizinho do Sul defende a liberdade de fechar parcerias bilaterais, sem as amarras do bloco econômico. No entanto, se a posição dos demais sócios se impor, o Uruguai precisará cumprir as regras do Mercosul para usufruir das vantagens.
O atual governo de Luis Lacalle Poul também mantém uma postura crítica ao governo da Venezuela e rejeitou a retomada de instituições de integração regional como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Ele fez críticas à declarações do governo brasileiro. “Precisamos parar com essa tendência de criar organizações, vamos à ação”, declarou. “Fiquei surpreso quando [Lula] falou que o que acontece na Venezuela é uma narrativa”.
Chile
O Chile, que sempre aparentou ser cisne da prosperidade e estabilidade na América do Sul, passou por enormes turbulências sociais e enfrenta uma segunda tentativa de construir uma nova Constituição. O governo de Gabriel Boric fracassou na tentativa de promulgar uma Carta elaborada por uma Constituinte majoritariamente de esquerda. A população do país rejeitou o projeto, e uma nova Constituinte foi eleita, dessa vez, composta, em sua maioria, por conservadores.
Boric disse que está contente que a Venezuela volte a instâncias multilaterais porque acredita que nesses espaços é onde os problemas se resolvem. “Isso, porém, não pode significar fazer vista grossa às questões que são importantes para nós desde o início”, disse ele, expressando discordância com Lula sobre a situação dos venezuelanos. O Chile é um dos países que mais recebem imigrantes daquele país.
Outra divergência com outros governos é a reforma da Unasul. Como Lacalle Pou, Boric também resiste a um bloco que o impeça de acordos bilaterais. O Chile tem feito acordos com China e EUA fora do âmbito do Mercosul e prefere manter esta autonomia.
Colômbia
A Colômbia vive um momento de mudanças no governo. Com dificuldades de cumprir sua agenda progressista de reformas trabalhistas, previdenciárias e na área da saúde, o presidente de esquerda Gustavo Petro demitiu, em abril, sete ministros, em meio a mais grave crise política de seu mandato, que começou em agosto do ano passado.
Petro defendeu, ao chegar no Palácio do Itamaraty, mais ações concretas dos países da América do Sul no sentido de promover a integração regional, e destacou a necessidade de avançar as discussões em relação à crise climática. Ele foi o único chefe de Estado que conversou com a imprensa antes do início da reunião de cúpula que ocorre em Brasília.
Em uma rápida entrevista no saguão do Itamaraty, Petro declarou que é preciso “buscar consensos, uma voz unificada na América do Sul”. Na avaliação dele, os discursos convergem para a integração continental, mas ainda faltam medidas concretas”.
Ele citou ainda como prioridade a integração de infraestruturas dos países, em especial “a interconexão elétrica, para superar os problemas do mundo”.
O presidente da Colômbia também destacou que a superação da emergência climática é um dos maiores desafios globais. “Esse é o primeiro grande salto adiante, uma verdadeira luta desse que é o principal problema da humanidade.”
Equador
O Equador atravessa uma recente crise institucional. A duas semanas, o presidente Guillermo Lasso dissolveu a Assembleia Nacional para evitar o avanço do processo de impeachment contra seu governo. Com isso, ficou obrigado a convocar eleições presidenciais para 20 de agosto, em um movimento chamado de “morte cruzada”.
Até a posse do novo presidente, Lasso governará o Equador por decreto, o que é visto com muita desconfiança pela sociedade civil. É nessa situação, sem ter se decidido ainda se tentará manter-se no cargo pela via eleitoral, que ele virá a Brasília.
Bolívia
Aproveitando um período de estabilidade política e institucional, a Bolívia virá ao Brasil com uma agenda pragmática, estruturada na exploração de recursos minerais, uma das principais atividades econômicas do país. Com o declínio da produção de gás natural, que tinha no Brasil o principal comprador, o país busca parcerias para ampliar a extração de metais valiosos para o processo de transição energética, como o lítio, usado na fabricação de baterias.
Em comum com outros vizinhos, a Bolívia compartilha o interesse de construir, com o Brasil, uma infraestrutura que amplie a integração logística da América do Sul, com a ampliação do corredor bioceânico, uma rede de estradas que une o Atlântico ao Pacífico. A integração física pode incrementar a exportação de commodities agrícolas e minerais da região.
Guiana e Suriname
Guiana e Suriname têm peso pequeno na economia e na política da América do Sul. Mas ganharam destaque especial, nos últimos meses, por explorarem petróleo na costa do Atlântico. A Petrobras também encontrou condições similares na chamada margem equatorial, mas enfrenta resistências ambientais.
As experiências e pesquisas dos dois pequenos países do extremo norte do subcontinente estão sendo avaliadas e podem ser compartilhadas pelos dois presidentes na reunião em Brasília.
Fonte: Portal Vermelho