Apenas 14% das unidades brasileiras contam com berçário, espaço exclusivo para que as mães cuidem de seus bebês. Falta de estrutura prejudica o aleitamento materno
O Brasil tem a quarta maior população carcerária feminina do mundo, segundo dados do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Um levantamento do órgão com dados de 2018 apontava cerca de 42 mil mulheres encarceradas em todo território nacional.
A situação impõe um desafio para mulheres presas que têm filhos em idade de amamentação: como alimentá-los exclusivamente com leite materno até os seis meses de idade, como recomenda o Ministério da Saúde? A realidade dos presídios brasileiros cria entraves para que isso aconteça.
Neste texto, explicamos o que diz a lei sobre amamentação em presídios, mostra os dados disponíveis sobre a situação das mães e seus bebês, relembra a importância da prática nessa fase da vida das crianças e lista possíveis medidas para alterar o quadro atual.
A lei sobre amamentação em prisões
Informações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) indicavam 622 mulheres grávidas ou em fase de amamentação nos presídios brasileiros em 2018. Do total, 373 eram gestantes e 249 viviam com seus bebês.
São Paulo liderava a lista de estados com maior número de mulheres gestantes ou lactantes custodiadas – eram 139 e 96 mulheres, respectivamente. Em seguida, estavam Minas Gerais (22 gestantes e 34 lactantes) e Rio de Janeiro (28 gestantes e 10 lactantes), ainda de acordo com dados coletados pelo CNJ.
Ana Elisa Bechara, professora titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), listou as leis que garantem os direitos das detentas e seus filhos nas penitenciárias femininas:
O inciso 50 do artigo quinto da Constituição Federal assegura que as crianças devem permanecer com suas mães durante todo o período de amamentação, que deve ser exclusiva até os seis meses de idade;
Como complemento, o artigo 83 da Lei de Execução Penal versa sobre a importância das instituições carcerárias contarem com espaços adequados para que as mães possam amamentar;
A portaria 210, regida pelo Ministério da Justiça e pela da Secretaria de Políticas para as Mulheres, institui o período de amamentação e também de convivência da detenta com seu filho em no mínimo seis meses;
Em 2016 uma alteração no Código de Processo Penal definiu, dentro do artigo 318, que as mulheres gestantes ou mães de crianças de até 12 anos podem ser submetidas à prisão domiciliar. Isso vale para mulheres que ainda não foram condenadas, mas estão em processo de julgamento.
O que é oferecido para as mães detentas
Dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) também de 2018 mostravam que apenas 16% das penitenciárias femininas brasileiras possuíam celas para gestantes, enquanto 14% das unidades contavam com berçário.
Barbara Ayres, assistente de pesquisa na Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) envolvida no estudo “Nascer nas Prisões”, de 2017, lembra que o acesso aos presídios com alas específicas para gestantes e puérperas fica condicionado ao número de vagas disponíveis.
Após o parto, as detentas em presídios com berçários ficam exclusivamente nesses ambientes, que possuem camas adequadas para as mães, berços para os bebês e poltronas de amamentação.
Nas instituições em que as mulheres não têm acesso a esse espaço, a amamentação é feita em espaços improvisados, como dentro de suas próprias celas.
O pré-natal para mulheres na prisão
O censo da Fiocruz analisou a situação do pré-natal de 241 mulheres presas. Dessas, 36% tiveram um pré-natal inadequado. A escala foi feita com base no número de consultas, sendo seis o número ideal considerado pelo Ministério da Saúde.
A maior dificuldade tem a ver com o local em que as consultas são feitas. As grávidas precisavam se deslocar das penitenciárias até unidades de saúde, o que exige liberação por parte dos superiores e uso de viatura. Porém, o atendimento dentro das penitenciárias é ainda mais difícil devido a baixa quantidade de profissionais disponíveis para o serviço.
Ana Maria Martínez, advogada e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Distrito Federal, conta que existem presídios que possuem apenas um ginecologista para atender mais de 1.500 mulheres.
Também é difícil assegurar o direito à companhia no puerpério de algum familiar escolhido pela detenta. “Isto ocorre porque o indivíduo que está preso, independentemente do gênero, não é visto como um sujeito digno de direitos”, afirma.
O pré-natal é importante para constatar qualquer doença que a mulher venha a ter durante a gestação, como diabetes gestacional ou mesmo sífilis, comum em ambientes insalubres como as unidades prisionais. Essa avaliação de saúde fisiológica e também psicológica permite um parto e um pós-parto mais tranquilos para a mãe e seu recém-nascido.
Como as mães lidam com a situação
O censo feito pela Fiocruz em 2017 avaliou o número de crianças de até seis meses que viviam com as mães nas prisões e estavam sendo alimentadas exclusivamente com leite materno, como recomenda o Ministério da Saúde.
Para isso, os pesquisadores perguntaram às mães se a criança havia sido amamentada nas últimas 24 horas. Entre as 241 entrevistadas, 26% delas responderam que não. Isso indica que uma parcela dos bebês recebe alimentos contraindicados para a sua idade, sendo desmamados precocemente.
Algumas mulheres optam por desmamar seus filhos cedo devido ao medo de desenvolver vínculos com a criança. De acordo com Bechara, a falta de estrutura dos presídios levava as próprias autoridades das penitenciárias, como gestores e diretores da unidade, a separarem os bebês de suas mães logo que eles completavam seis meses de idade. Na falta de familiares para cuidar da criança fora da instituição, os pequenos eram encaminhados para a adoção.
No entanto, a profissional aponta que o número de crianças direcionadas aos serviços de abrigamento tem diminuído na medida em que a Defensoria Pública tem atuado para garantir a efetividade dos direitos das crianças e das mães detentas.
As violações dos direitos das mães
Ana Gabriela Mendes Braga, professora de Direito e coordenadora do Nepal (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Aprisionamentos e Liberdades), grupo vinculado à Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp (Universidade Estadual Paulista), afirma que é comum olhar para os direitos da criança como se a garantia deles fosse contrária aos direitos da mãe.
“Ministério Público, Estatuto da Criança e do Adolescente buscam defender o melhor interesse da criança. Mas quem define isso? A mãe não tem voz nesse processo?”, questiona Braga, segundo quem é preciso resguardar às mulheres a autonomia frente ao exercício da maternidade.
Para ela, as principais violações enfrentadas pelas mães e crianças no cárcere são institucionais, como a condição de viverem o tempo todo no mesmo espaço sem a presença de terceiros para dividir os cuidados e o afeto, o que ela denomina de “hipermaternidade”.
Segundo relatos ouvidos pela pesquisadora, este momento é marcado pelo aprofundamento de sentimentos como solidão e controle, já que o rigor da disciplina é ainda mais imposto às mulheres cuja maternidade está sendo vivenciada sob total tutela do Estado.
Em artigo científico publicado na Conectas – Revista Internacional de Direitos Humanos, em 2015, a professora Ana Gabriela Mendes Braga explica que mães aprisionadas enfrentam a transição da “hipermaternidade” para a “hipomaternidade”.
A primeira (“hipermaternidade”) é caracterizada pelo período de convivência entre mães e bebês nas prisões. Nessa fase, as mulheres são afastadas de outras atividades como as laborais e de estudos, frequentemente utilizadas para remissão das penas, e passam a permanecer de modo ininterrupto com as crianças.
Por outro lado, a “hipomaternidade”, de acordo com Braga, é o momento da entrega da criança após finalizar o tempo legal de permanência no cárcere. “Além do isolamento, da solidão e do excesso de disciplinamento dos espaços materno-infantis, outro ponto que nos chamou a atenção e nos incentivou a identificar o paradoxo presente no sistema prisional feminino: o do excesso de maternidade versus a completa ausência”.
Para Braga, estudiosa das relações de gênero e o sistema prisional brasileiro, um dos principais problemas é a maneira abrupta com que as crianças são retiradas do convívio com as suas mães. “De uma hora para a outra – muitas vezes a mãe não sabe nem o dia em que serão levadas -, as crianças vão para casa de familiares com quem não tiveram contato antes ou são levadas para algum abrigo, correndo o risco de adoção e de nunca mais encontrar sua família biológica”, diz.
A professora de Direito e coordenadora do Nepal considera que mulheres encarceradas que são mães estão sujeitas ao “incremento punitivo de gênero”, ou seja, além da restrição na liberdade, enfrentam a culpabilização por manterem seus filhos enquanto estão presas.
Ela ressalta, porém, que “o dever ser feminino nunca coube a essas mulheres”. “Esse lugar sagrado da maternidade é privilegiado, resguardado, principalmente, para mulheres brancas”. A maioria das mulheres encarceradas (70%) é negra ou parda, 56% são solteiras e quase 70% têm entre 20 e 29 anos, segundo perfil criado pela Fundação Oswaldo Cruz e Ministério da Saúde, em 2018.
A importância para as crianças
O aleitamento materno como alimento exclusivo para crianças de até seis meses é necessário porque, nesse período, elas não têm maturação fisiológica para receber outros tipos de alimentos.
Além disso, como explica Ayres, “a composição do leite materno varia de mãe para mãe, porque há uma conexão entre a mãe e a criança”. “As necessidades do bebê se fazem através do leite e não tem nenhum outro tipo de alimento que supra essa necessidade”, afirma.
As crianças com menos de seis meses que vivem dentro dos presídios e são desmamadas precocemente acabam se alimentando de outras comidas fornecidas por familiares ou têm acesso ao mesmo prato de suas mães.
As sugestões para mudar a situação
Ana Maria Martínez também chama atenção para o entendimento de que cárcere não é uma construção pensada para receber mulheres, principalmente, mães, embora determinações como a Constituição Federal de 1988 e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) resguardem direitos como a amamentação e convivência com os filhos às mulheres encarceradas.
“A maternidade é supervalorizada pela sociedade, mas a mãe tem que ser perfeita. Como que uma mulher pode ser mãe e criminosa? Tem algo errado. Se cometer algum crime tem que ficar longe do seu filho, não é uma boa influência. É comum ouvir ‘como que você traficava com o seu filho no quarto?’. Nós não vemos esse tipo de consideração quando ocorre a prisão de um pai ou de um avô”, avalia Martínez.
A advogada afirma que, apesar de existirem diversas leis que busquem garantir os direitos de mães apenadas e seus filhos, na realidade elas nem sempre são efetivadas: “eu entendo que não faltam legislações, mas faltam que elas sejam aplicadas”.
Ayres cita o sistema prisional francês como referência, em que as mães encarceradas têm acesso a uma estrutura completa capaz de dar toda a assistência necessária ao bebê. De acordo com a pesquisadora, por mais que haja unidades prisionais com berçários no Brasil, são poucas e ainda assim não são exclusivas para esse tipo de situação.
Bechara explica que há um antigo discurso de que as leis não são cumpridas devido a limitações de orçamento por parte do Estado, responsável pela manutenção das penitenciárias. De acordo com ela, há uma questão de interesse político por trás.
“Existe no imaginário da sociedade uma ideia de que a pena deve representar um sofrimento para quem está cumprindo. A ideia de que nos presídios falte comida, água, absorvente ou até uma dipirona para o bebê que está com febre é algo normalizado. Politicamente, não convém ao Estado ou aos agentes políticos fazer o discurso de direitos humanos dentro do cárcere”, diz Bechara.
Para mudar esse cenário, é preciso antes de tudo ter uma equipe de funcionários capacitados dentro dos presídios, que respeitem os direitos fundamentais das mães e dos bebês. Outro ponto importante é a resolução do problema de superlotação das penitenciárias, aplicando penas que não exclusivamente a pena privativa de liberdade.
Por exemplo, em vez de encaminhar a detenta para o presídio, é possível condená-la a prestação de serviços para a comunidade. Isso resolve ainda problemas orçamentários, já que uma mulher dentro da penitenciária custa ao Estado cerca de R$ 2.000 por mês, enquanto a pessoa que está prestando serviços não representa gastos vinculados à alimentação e uniforme, por exemplo.
*Esta reportagem foi produzida pelas jornalistas Franciele Rodrigues e Carolina Fioratti como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.