Quando a Lei de Cotas para negros em concurso público foi adotada, em 2014, o número de brancos ingressando no funcionalismo federal recuou de 64%, em 2008, para 52%, enquanto o de pretos e pardos subiu de 29% para 42% no período.
Entre 2009 e 2013, o número de negros nos quadros federais estava aumentando lentamente, chegando ao patamar mais alto em 2012 —32,3%—, mas ainda bem abaixo do ano de implementação das cotas.
O mesmo percentual de 42% se manteve em levantamento de 2020, seis anos após as cotas, embora o número de concursos autorizados tenha desabado (de 279, em 2014, para 7, em 2020) e, com isso, o número de vagas. Os dados são de pesquisa inédita da República.org.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 55,7% da população se declarou preta ou parda entre julho e setembro deste ano.
O serviço público em geral, porém, ainda não espelha a sociedade brasileira, afirma Cibele Franzese, professora e coordenadora do curso de graduação de administração pública da FGV/EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas).
“O Brasil tem uma desigualdade racial grande em todos os setores, é histórica, e vem desde a época da escravização”, afirma Cibele. Para ela, as cotas são uma forma de reparação, porque não haveria inclusão naturalmente, sem a lei.
“Precisamos ter diversidade em todos os espaços, mas quando falamos de um ambiente no serviço público, os funcionários vão oferecer políticas públicas a uma população mais diversa. Quem recebe o serviço público muitas vezes não se sente representado”, afirma a professora da FGV.
O médico anestesiologista Mário Henrique Oliveira Santos, 33, ingressou no serviço público federal em 2020 por meio das cotas e, atualmente, é concursado da rede Ebserh, atuando na Maternidade Escola Assis Chateaubriand, em Fortaleza, Ceará.
Ele cresceu em família de classe média baixa e estudou em bons colégios com bolsas graças ao seu desempenho em olimpíadas de matemática, até ingressar em medicina na universidade pública. Mas Santos afirma que o país é desigual desde os tempos da escravização e, por essa razão, as cotas são essenciais para igualar as oportunidades.
“Não me percebia negro porque frequentava espaços de pessoas brancas. A entrada no serviço público pelas cotas mudou como me vejo hoje, um homem negro. Agora, gosto da minha cor e valorizo minha cultura. Vivo o sonho dos meus ancestrais de 300 anos atrás, que talvez sonhassem viver o que vivo e não podiam”, diz Santos.
O médico afirma que os pretos e pardos ainda são minoria em seu ambiente de trabalho. “De anestesiologistas negros, só tem eu e outra colega num quadro de cerca de 40 profissionais [na mesma função]. As cotas proporcionam uma espécie de quitação.”
Cibele, a especialista da FGV, afirma que os concursos públicos deviam ser reformulados para ampliar a igualdade ao aprimorar a forma de recrutamento e trabalhar para levar a cota para os cargos de direção.
Atualmente, em quatro áreas estratégicas do governo federal (saúde, educação, segurança pública e assistência social), há 19% de negros em cargos de chefia, segundo o levantamento da República.
“Eles não avaliam a vocação, o comprometimento e a experiência. Analisam o concurseiro, que consegue se dedicar exclusivamente para prestar a prova. Essa não é uma realidade para a maioria dos candidatos negros. Por isso eles precisam da cota”, afirma a especialista da FGV.
Tatiana Silva, servidora da carreira de técnico e planejamento em pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), conta que muitos concurseiros precisam investir, além de tempo, dinheiro para passar em um concurso de maior prestígio e remuneração, geralmente mais concorridos.
“Na pesquisa que fizemos para magistratura do trabalho, os candidatos aprovados reportaram gasto acima de R$ 30 mil para participar de um só concurso. É preciso repensar em como redemocratizar o serviço público à população negra e demais grupos sociais da população, para termos acesso mais amplo”, diz Tatiana.
Outro fator que pode ter contribuído para a desigualdade racial foi a redução do número de concursos autorizados —aqueles que ganham sinal verde para acontecer após levantamento da necessidade de vagas, e estão previstos no orçamento. É o que explica Maria Aparecida Chagas Ferreira, especialista em políticas públicas e gestão governamental.
Na pesquisa, ela cita dados do Ministério da Economia de que em 2014 foram autorizados 279 concursos públicos federais, com 27.205 vagas. Em 2020, ganharam autorização apenas 7 concursos, para prover 3.813 provimentos no Poder Executivo Federal.
“Se há uma redução de concursos, consequentemente há uma redução de pessoas negras ingressando no serviço público. Houve os cortes e nenhuma proposta em contrapartida”, afirma.
Outro comparativo na pesquisa da República.org mostra que, em 20 anos, o número de servidores negros que ingressaram no funcionalismo federal subiu de 17% em 2000 para 43% em 2020. Isso representa uma alta de 153% no período.
Em dados absolutos, dos 1.581 servidores que entraram em 2000, apenas 266 eram negros. Esse número ganhou mais equilíbrio em 2014, ano da Lei de Cotas, quando dos 36.365 contratados no funcionalismo federal, 15.204 eram pretos ou pardos.
Em 2020, considerando a redução dos concursos públicos e de vagas, foram contratados 1.787 servidores, sendo que 777 deles eram negros.
Mas esses números não representam um avanço na prática, diz Cibele. “A política de não contratação faz parte de um ajuste fiscal do [ministro da Economia] Paulo Guedes, de que você não contrataria funcionários públicos e reduziria a força de trabalho a partir das aposentadorias. O que eu discordo totalmente.”
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos admite que “existe espaço” para aprimorar a Lei de Cotas, que ela é importante para aumentar a diversidade e possibilita o aperfeiçoamento na elaboração de políticas públicas e no atendimento aos cidadãos.
Com relação à baixa presença da mulher negra em cargos de direção, a nota afirma que há uma tendência pela inclusão e representação, “reconhecendo-se que ainda existe uma sub-representação, o que precisaria ser reavaliado no âmbito dos ministérios, concomitante a implementação de ações para a mudança”.
O Ministério da Economia afirma que não houve detrimento no atendimento ao público com o corte nos concursos públicos, mas sim uma otimização dos serviços. Em nota a pasta explica que houve uma readequação nas funções executadas por servidores públicos federais, o que resultou no atendimento de 140 milhões de brasileiros que possuem conta no site gov.br.
Este processo, segue a nota, tem colocado servidores que antes estavam em tarefas operacionais repetitivas em atividades mais estratégicas.
Fonte: Redação Folha de S. Paulo