Subnotificação de dados e desafios para realizar a denúncia agravam a violência contra mulheres indígenas
Entre 2003 e 2022, os casos de feminicídio de mulheres e adolescentes indígenas no Brasil aumentaram alarmantes 500%, com as vítimas sendo predominantemente jovens, solteiras e com menor escolaridade. A região Sul apresenta uma taxa de mortalidade significativamente alta, com 4,5 mulheres mortas por 100 mil, número muito acima da média nacional.
As informações são do Relatório Técnico sobre Homicídios contra Mulheres e Adolescentes Indígenas no Brasil, desenvolvido pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas.
No total, foram registrados 394 homicídios de mulheres e adolescentes indígenas. A região Centro-Oeste teve o maior número de mortes, com 157 casos e uma taxa de 9,7 por 100 mil. Mato Grosso do Sul lidera com 149 homicídios.
Apesar de apresentar números absolutos menores, a região Sul se destaca pela alta incidência relativa. No período analisado, ocorreram 33 homicídios, com uma taxa de 4,5 por 100 mil. O Paraná, com 16 mortes e uma taxa de 6,2, lidera a região. O interior do estado, próximo à fronteira com Paraguai e Argentina, concentra a maior parte dos homicídios.
“A violência contra as mulheres indígenas dentro do nosso território não é cultural, o machismo e o patriarcado penetraram nossas estruturas sociais e se fortaleceram com a colonização”, explica Amauê Jacinto, indígena guarani Nhandewa, diretora executiva da Associação de Mulheres Indígenas Organizadas em Rede (Amior). “Além disso, nunca houve um trabalho eficaz de prevenção e combate a essas ações. A negligência do estado criou um campo fértil para essas violências. As mulheres indígenas estão sozinhas”, afirma.
Embora a violência de gênero seja amplamente discutida na sociedade, pouco se fala sobre as agressões vivenciadas pelas mulheres indígenas, tanto dentro quanto fora das aldeias. O relatório revela que estas mulheres estão expostas a diversas formas de violência, incluindo física, psicológica, ameaças e humilhações.
Além disso, 28,7% dos homicídios ocorreram no domicílio, indicando desafios relacionados às dinâmicas familiares. Outros 18,8% dos casos ocorreram no hospital, indicando que uma parcela significativa dos óbitos ocorre após a vítima buscar assistência.
Amauê destaca que não são raros os relatos de mulheres que sofreram abuso sexual dentro de suas próprias casas por familiares próximos, como pai, tio ou padrasto. Muitas carregam até hoje o trauma e o medo dos abusos, mas relatam dificuldades em falar sobre o assunto e denunciar, frequentemente por estarem sozinhas e vulneráveis durante o abuso.
“A violência sexual ainda é um tabu nas comunidades indígenas, o que faz com que muitas vítimas não denunciem por medo de serem mal faladas ou por receio das ameaças que sofrem”, diz ela.
Ameaças e tentativa de assassinato
Em 2020 Amauê Jacinto denunciou violências cometidas pela liderança da comunidade em que vivia, em São Jerônimo da Serra, no norte do Paraná. Como resultado, foi ameaçada e expulsa de seu território.
Meses depois, Amauê acolheu em sua casa um grupo de mulheres e crianças indígenas vítimas de violência. Identificada como liderança das mulheres, sofreu uma emboscada seguida de tentativa de assassinato, supostamente organizada pelos agressores que havia denunciado.
“Eu estava gestante e tive minha casa cercada por mais de 30 pessoas, eles gritavam que iriam entrar e me matar”, relembra emocionada. “A intenção era matar mesmo. Essa é uma das consequências que sofremos quando denunciamos as violências no território”, afirma. Expulsa de seu território, Amaue passou a integrar o Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.
Ela e as demais mulheres e crianças vítimas de violência perderam o acesso ao território e precisaram migrar. A migração de mulheres indígenas para áreas urbanas, em busca de sobrevivência, reflete não apenas as dificuldades enfrentadas em suas Terras Indígenas (TI), mas também a perda de vínculo com sua cultura e identidade.
“Para o indígena, perder o acesso ao território é difícil porque temos que viver em uma realidade e estrutura social totalmente diferente. Estamos expostos a uma sociedade racista, sabemos que não teremos as mesmas oportunidades e não vamos conseguir nos consolidar”, diz Amauê.
Há três anos refugiada em um território não indígena, Amauê cria sua filha sem acesso à sua terra. “Minha perspectiva é que, nesta geração, eu não consiga voltar para uma terra indígena. Talvez minha família consiga, mas eu não. A violência é muito estrutural, e cada vez que defendo mulheres, arrumo mais inimigos”, diz.
Dificuldade para denunciar
Ao longo da história do Brasil, as mulheres indígenas foram sistematicamente invisibilizadas. Ainda hoje, enfrentam desafios únicos em suas relações sociais e na luta contra a violência de gênero, quando comparadas às mulheres não indígenas.
“A sociedade não se comove com as mulheres indígenas, os movimentos e organizações não se mobilizam. Parece haver um grande acordo entre estado, movimentos indígenas e organizações para não se falar ou debater sobre isso”, afirma Amauê Jacinto.
Assim como muitas mulheres em situação de violência doméstica, as mulheres indígenas encontram diversas dificuldades para denunciar seus agressores. Isso se deve ao medo, vergonha, temor de represálias familiares ou à falta de conhecimento sobre como realizar a denúncia e buscar ajuda.
“Existe toda uma estrutura machista que faz com que as mulheres sejam oprimidas, fiquem com muito medo e não denunciem os crimes cometidos. Se uma mulher faz a denúncia, ela sabe que a violência pode ser ainda maior”, diz Amauê.
As mulheres indígenas também enfrentam desafios adicionais como o isolamento das comunidades, que limita o seu acesso às informações sobre seus direitos. Muitas vezes, as delegacias e outros serviços públicos ficam distantes, e as mulheres vítimas de violência não têm recursos financeiros ou meios para acessá-los.
Elas também enfrentam barreiras linguísticas, pois muitas não falam português, e os órgãos estatais não estão preparados com tradutores e intérpretes para fazer a tradução linguística e intercultural.
Além disso, a Associação de Mulheres Indígenas Organizada em Rede (Amior) ressalta que as instituições que lidam diretamente com essas comunidades, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), muitas vezes hesitam em interferir nos casos de violência, citando a autodeterminação dos povos como uma barreira, enquanto as mulheres indígenas enfrentam restrições em relação a seus corpos-territórios, às suas liberdades e ao acesso aos direitos básicos.
“Quando procurei uma delegacia para fazer a denúncia, sofri racismo e eles sequer aceitavam meu relato. Queriam que eu falasse com a Funai porque era problema interno e eles não poderiam fazer nada. Todos os órgãos citavam a Funai e, mesmo quando procurei a organização, não queriam fazer algo”, relata Amauê.
Em carta-compromisso divulgada pela Amior, a organização ressalta que “a autodeterminação dos povos, embora seja um princípio importante, não pode servir de justificativa para violações dos direitos humanos, como a violência contra mulheres e crianças”.
Para a associação, as violências doméstica, intrafamiliares e/ou sexual contra mulheres e crianças não se enquadram nestas garantias de direito à autodeterminação dos povos; são crimes que atentam contra a dignidade humana, passíveis de penalidades aplicadas pelo direito criminal do estado brasileiro.
“Existem casos em que as pessoas conseguem vencer todos esses obstáculos e alcançar a justiça, principalmente em crimes hediondos. Quando não há uma penalidade equivalente dentro do território, a justiça brasileira age. Tivemos casos de condenação por feminicídio e estupros coletivos. Mas, para cada caso condenado, existem tantos outros que estão sendo abafados”, afirma Amauê.
Ausência de dados
A obtenção de números e dados sobre violência contra mulheres indígenas é uma tarefa complexa, frequentemente dificultada pela ausência de registros oficiais e pela cultura do silêncio prevalente em muitas comunidades.
A falta de estatísticas precisas sobre a violência contra a mulher, além da desinformação sobre seus direitos legais, como a Lei Maria da Penha, representa um dos principais desafios nesses territórios.
Transformar essa realidade é essencial, com a implementação de medidas efetivas para proteger essas mulheres e assegurar que seus direitos sejam respeitados. É necessário romper o ciclo de violência, proporcionando suporte emocional e jurídico às vítimas e garantindo que os agressores sejam responsabilizados por seus atos.
Além das violências físicas sofridas pelas mulheres indígenas em seus territórios, há outras formas de violência, como casamentos forçados, abuso sexual, doação de filhos sem consentimento da mãe, despejo da propriedade e restrição de acesso a propriedades. Essas práticas ilegais, que afetam negativamente a vida das mulheres indígenas, frequentemente não são quantificadas.
A subnotificação e a falta de enfrentamento eficaz agravam a situação, resultando em taxas crescentes de feminicídios em comunidades indígenas brasileiras, como é o caso no Paraná.
“O estado tem que fazer um levantamento sério do que está acontecendo nas comunidades, precisam entrar nos territórios e enxergar de verdade o que está acontecendo, para que não haja casos subnotificados”, afirma Amaue.
Observatório da Violência contra as Mulheres Indígenas no Paraná
A Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), através do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), lançou o Observatório da Violência contra as Mulheres Indígenas no Paraná.
A criação do observatório representa o início de uma articulação permanente da defensoria para desenvolver respostas às situações de violência de gênero enfrentadas por mulheres indígenas, tanto dentro quanto fora de seus territórios.
“Normalmente, não atuamos em casos individuais, mas temos recebido um número expressivo de denúncias, e as mulheres indígenas nos procuraram para idealizar o observatório de violência contra as mulheres indígenas”, afirma Mariana Nunes, coordenadora do Nudem.
“Buscamos garantir o protagonismo dessas mulheres, com uma intervenção que visa o apoio, respeitando suas cosmovisões e sem ignorar a violência grave e sistemática que enfrentam”, explica a defensora.
A carência de dados sobre as violências foi o impulso para a criação do observatório, que terá a função de registrar casos já relatados informalmente, envolvendo diversos tipos de violência: física, sexual, patrimonial, política, obstétrica, simbólica e psicológica. O observatório também responde à demanda das mulheres indígenas por maior representação nas instâncias de poder e tomada de decisão.
Uma das primeiras medidas adotadas pelo Nudem foi a criação de um formulário para receber as denúncias formalmente. Disponível no site da Defensoria Pública, o formulário coleta dados sobre violências cometidas contra mulheres indígenas no Paraná, com o objetivo de subsidiar a elaboração de políticas públicas específicas para a prevenção e combate à violência de gênero contra essas mulheres. Será possível registrar a denúncia tanto como vítima quanto como testemunha.
Fonte: Brasil de Fato