Para jornalista realizar a divulgação do Festival é uma oportunidade de desconstruir preconceitos sofridos pela população negra
A programação do FILO (Festival Internacional de Londrina) encerra no próximo domingo (2 de julho). Em entrevista ao Portal Verdade, os curadores Eddie Mansan, Amanda Ferreira Marcondes e Carin Louro destacaram que, nesta edição, o olhar para as múltiplas diversidades existentes na sociedade brasileira (regional, de gênero, pertencimento étnico-racial, religião, classe social) guiou a definição das 40 apresentações que têm chego ao público nos últimos 16 dias (saiba mais aqui).
Mas não é apenas na seleção dos espetáculos e performances que a atenção às diferenças pode ser notada. Neste ano, quem dá corpo, voz e sentimento à divulgação oficial nas redes sociais do FILO é a jornalista, Fiama Heloísa. Mulher negra, atualmente, Fiama atua como repórter na TV UEL e integra coletivos da cidade como o Luiza Mahin, grupo que busca difundir a cultura afro-brasileira em Londrina.
Ela conta que o convite para compor a equipe do FILO lhe pegou de surpresa. No primeiro contato, realizado pela jornalista, roteirista e atriz Jackeline Seglin, Fiama achou que seria para trabalhar na assessoria do evento, com a produção de releases [comunicados aos meios de comunicação], por exemplo. Mas quando soube que seria a “cara” do Festival, realizando a mediação com o público, além de imensa honra, chegou a se questionar se possuía as habilidades para a função.
A desconfiança tem entre suas justificativas, o fato de nunca ter se enxergado ocupando este lugar. Como é sabido, embora as discussões sobre racismo na mídia estejam avançando nos últimos anos, o retrato de mulheres negras desempenhando papeis de grande visibilidade (e sem levar à objetificação de seus corpos) ainda não é muito frequente.
“Quando a gente vem para Londrina logo descobre o Festival. Foram aqui meus primeiros contatos de frequentar teatro mesmo, acompanhar as edições, quando lançava a programação eu sempre via todos os espetáculos, lia todas as sinopses. Eu fiz um material sobre os 50 anos, resgatando a história do FILO, na época, eu pesquisei bastante e fiquei muito encantada. Eu sou muito fã do FILO, trabalhando ou não, eu sempre acompanho. Então foi uma honra e um lugar que nunca pensei estar, quando a gente vê o Festival Internacional de Londrina, eu nunca me imaginei com competência o suficiente para fazer parte da equipe, que aí são nossas questões de sabotador, que a gente nunca se acha boa o suficiente, preparada o suficiente”, pontua.
Já na década de 1970, a intelectual negra, Lélia Gonzalez, chamava atenção para o “duplo nó”, ou seja, para o racismo e sexismo aos quais mulheres negras eram submetidas. Entre suas consequências, estas tinham que dispensar ainda mais esforço do que mulheres brancas para tentar obter o mesmo reconhecimento no mercado de trabalho. A obrigação de “estar sempre mais a frente”, pode ser notada de diversas formas como a realização de cursos complementares, aceitação de jornadas para além da contratada a fim de demonstrar que possuem capacidade de estar naquele cargo.
Após o espanto inicial, Fiama compartilha a alegria pelo convite e a importância em estar neste espaço. “A necessidade de estar neste lugar e até eu levei para terapia e uma frase que ela [terapeuta] me falou ‘já parou para pensar que das experiências que você teve em TV, eles te dispensaram por ser quem você é, e hoje o FILO quer por você ser quem é você é?’, acrescenta.
Com passagem por diferentes TVs comerciais da cidade, Fiama acumula uma série de discriminações na maioria das vezes apresentadas de forma sutil. Em seu relatos, ela cita pedidos como alisar os cabelos para se adequar aos padrões eurocentrados. “Olhar para tela e ver uma beleza que às vezes a gente teve tanta dificuldade de enxergar porque foi tão desconstruída”, afirma.
A jornalista reforça, assim, a necessidade de negras e negros exercerem papeis que não sejam subalternizados, rompendo com a reprodução de estereótipos que comumente associam esta (maior) parcela da população brasileira à violência e pobreza. Considerando o mercado de trabalho, ela evidencia que, além de atividades braçais, majoritariamente desvalorizadas, a negritude também é produtora de potencialidades e conhecimentos diversos, cujo racismo ainda tenta sufocar.
“Eu acho que é importante para gente construir outras realidades. Existem pessoas pretas jornalistas, existem pessoas pretas influenciadoras, a gente não está só naquele lugar de jogador de futebol, da mulher que samba, a gente faz outras coisas também. Temos o que falar também. Então, estamos na cultura, existem atrizes, atores negros. Somos diversos como qualquer outra pessoa. Nós estamos nos diversos espaços, pensamos. Acho que isso é muito importante, este lugar de reflexão. Estamos aqui para problematizar também, para pensar junto”, ressalta.
Acompanhe a programação do FILO neste fim de semana, disponível aqui.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.