O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) resolveu acatar uma lei que ele mesmo considerava inconstitucional para encerrar uma disputa judicial acerca da privatização da Eletrobras. Por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), o governo encaminhou um acordo com a nova gestão da ex-estatal para pôr fim aos questionamentos sobre o negócio fechado no governo de Jair Bolsonaro (PL).
O acordo foi anunciado pela AGU e a Eletrobras no dia 28 de fevereiro, véspera de Carnaval. Nesta quarta-feira (26), a Eletrobras disse que assinou os termos já anunciados. Eles agora serão analisados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já que foi negociado numa conciliação aberta após a AGU abrir uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) questionando a lei para privatização da Eletrobras.
Uma ADI serve justamente para discutir a constitucionalidade de algo – ou seja, se algo fere o que determina a Constituição. Em maio de 2023, a AGU entendeu que a lei da privatização da Eletrobras era parcialmente inconstitucional. Por isso, decidiu abrir uma ação no Supremo contra ela.
Essa lei fixou que nenhum acionista da ex-estatal pode ter um poder de voto de mais de 10% do total de acionistas votantes da empresa, independentemente da quantidade de ações que ele possua. A AGU entendeu que a regra representava “grave lesão ao patrimônio e ao interesse públicos”, já que o governo ficou com 43% das ações da Eletrobras após a privatização, mas passaria a votar como se tivesse 10%.
“A União, mesmo após a desestatização da companhia, ocorrida em 2022, embora continue a ser sua maior acionista, teve seus direitos políticos drasticamente reduzidos por medida ‘injustificável do ponto de vista jurídico-constitucional’”, argumentou a AGU, no STF.
O próprio presidente Lula chegou a dizer que, como foi feita, a privatização da Eletrobras representou um “crime de lesa-pátria contra o povo brasileiro”.
Apesar disso, menos de um ano depois da AGU ajuizar a ADI, ela desistiu de questionar a lei. No acordo fechado, o órgão concordou em manter inalterado os artigos da lei que limitaram o poder de voto do governo.
Sobre o poder de decisão na companhia, a União conseguiu no acordo três vagas no Conselho de Administração da Eletrobras, que contará com dez integrantes – ou seja, 30% –, além de uma vaga no Conselho Fiscal da companhia, constituído por cinco membros – ou seja, 20%. Em ambos os casos, abaixo dos 43% das ações que o Estado possui.
O salário de um conselheiro de administração da Eletrobras é de cerca de R$ 200 mil.
A AGU não respondeu por que resolveu acatar uma ela considerou inconstitucional. Só declarou que considera os termos do acordo “adequados”.
Ikaro Chaves, engenheiro eletricista e ex-funcionário do sistema Eletrobras, criticou a postura do governo no acordo. “Nada justifica que o governo abra a mão do interesse do Estado [sobre seu poder de voto] sem justificativa. Porque o interesse não é do governo, é do Estado brasileiro”, reclamou. “Não se pode conciliar com a Constituição. A Constituição precisa ser cumprida.”
“Os três cargos que o governo terá no conselho de administração não têm influência nenhuma numa sociedade anônima, como é a Eletrobras”, acrescentou Chaves.
O engenheiro integrou movimentos populares contra a privatização da Eletrobras. Depois, fez parte do governo de transição montado por Lula. Viu na ADI da AGU uma alternativa para rediscussão da venda da Eletrobras.
Lula chegou a prometer em sua campanha eleitoral rever o negócio. Com o acordo em negociação entre AGU e empresa, isso torna-se inviável. “O governo teve um discurso e uma prática diferentes. Na prática, o que o governo fez foi validar a privatização.”
Outros pontos
A Associação dos Empregados da Eletrobras (Aeel) divulgou um informe em que classifica o acordo entre AGU e Eletrobras como “um verdadeiro escárnio”. A entidade cita a mudança de postura do governo Lula sobre a constitucionalidade da lei da privatização da estatal, mas também outros pontos pactuados.
Segundo a Aeel, o acordo libera a Eletrobras de investir na manutenção das usinas de energia nuclear de Angra 1 e 2 e na conclusão de Angra 3. Essa obrigação havia sido pactuada na privatização. “O resultado disso é que o governo e o consumidor (o povo brasileiro) terão de arcar sozinhos com os mais de R$ 30 bilhões necessários para a atualização de Angra 1 e 2 e a conclusão de Angra 3, já que a Eletrobras, que deveria aportar quase metade desse valor se verá desobrigada”, diz a entidade.
A entidade ainda critica o fato de o acordo prever a emissão de títulos de dívida pela Eletronuclear que serão subscritos pela Eletrobras. “Ou seja, não bastasse todo o prejuízo, a Eletronuclear passará a ter uma dívida com a Eletrobras”, informou.
Para a Aeel, esse acordo só beneficia os acionistas privados da Eletrobras e o grupo 3G, do bilionário Jorge Paulo Lemann e o mesmo da fraude bilionária nas Americanas. Segundo os trabalhadores, o grupo hoje controla a Eletrobras indicado executivos para postos-chave na empresa mesmo tendo menos de 0,5% de suas ações ordinárias.
Privatização contestada
A Eletrobras foi privatizada em junho de 2022. O governo de Bolsonaro colocou ações da empresa à venda e reduziu sua participação nela de 65% para 42%. Com isso, deixou de ser acionista majoritário e perdeu o controle da companhia.
Por isso, o governo recebeu cerca de R$ 30 bilhões, que acabaram sendo usados para redução dos impostos sobre combustíveis às vésperas da eleição presidencial.
Sindicatos e movimentos populares se manifestaram contra a privatização da Eletrobras. Uma série de ações foram protocoladas para tentar evitar a venda do controle da empresa, a maior do setor de energia de toda a América Latina. Nenhuma delas prosperou.
Fonte: Brasil de Fato