A liberdade de expressão enquanto direito absoluto tem sido constantemente evocada em discursos bolsonaristas, que se queixam de restrições nas redes sociais especialmente após decisões proferidas pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). No contexto judiciário brasileiro, porém, esse direito não é absoluto. Há limites constitucionais que passam pelo respeito à diversidade e soberania do Estado Democrático de Direito.
O tema ganhou ainda mais relevância após embate entre o empresário Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), e Alexandre de Moraes. Musk insinuou, em 6 de abril, que o ministro estaria praticando censura. As críticas às decisões de Moraes ocorrem principalmente diante de inquéritos, como o das fake news, que removeram conteúdos e bloquearam contas de parlamentares e influenciadores sob a justificativa legal de serem informações falsas, ataques à democracia ou discursos de ódio.
No domingo (21), durante ato realizado no Rio de Janeiro, o ex-presidente Jair Bolsonaro repetiu o mantra: “o sistema, que vocês já começam a ver a cara, não gostou dos 4 anos nossos e passou a trabalhar contra a liberdade de expressão”.
Em seu artigo 5º, o texto constitucional garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à liberdade. “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, diz o inciso IV. Entretanto, juristas reforçam que há limites estabelecidos na própria Constituição, por exemplo, em casos de discurso de ódio, racismo e de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito.
A Lupa elencou algumas definições e interpretações acerca da liberdade de expressão. Confira:
O que é liberdade de expressão
Autor do livro Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988, o professor José Emílio Ommati, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, lembra que a liberdade de expressão é um princípio democrático. “Um regime democrático procura o respeito à diversidade, o respeito à diferença. E para que a gente possa respeitar a diversidade, é preciso que, por exemplo, as minhas ideias possam ser ditas. A liberdade de expressão, portanto, é o direito que toda pessoa tem de dizer o que pensa, de externar as suas ideias, a sua forma de vida, como ela vê o mundo, a sua ideologia política, as suas questões religiosas”, diz.
Pensamento similar tem o professor Fábio Calheiros do Nascimento, da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie. Ele lembra, contudo, que a liberdade de expressão não é um direito absoluto. “A questão é que a gente, em geral, quer que os limites sejam dos outros. A gente tenta enviesar a nossa análise para que o limite seja posto nos outros. Se eu tô falando, por exemplo, sobre religião, eu quero ter liberdade absoluta, mas se o outro está falando, eu quero que ele seja limitado, porque ele me atingiu.”
O STF publicou em junho de 2023 um documento intitulado Supremo Contemporâneo, tendo como temática a liberdade de expressão. O texto traz uma seleção dos principais casos a respeito do tema que foram julgados pela Corte entre 2007 e 2022. Em resumo, a publicação afirma que:
“A liberdade de expressão “existe para a manifestação de opiniões contrárias, jocosas, satíricas e até mesmo errôneas, mas não para opiniões criminosas, discurso de ódio ou atentados contra o Estado Democrático de Direito e a democracia”. [Trecho do documento Supremo Contemporâneo, página 17].
O artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
Entretanto, em seu artigo 29, o texto também afirma que essa liberdade tem limitações e deve “assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.
Quais os limites
Conforme explica o professor José Emílio Ommati, há limites estabelecidos no contexto judiciário brasileiro para a liberdade de expressão. “O primeiro limite constitucional da liberdade de expressão é a proibição de racismo”, diz Ommati, lembrando do caso Ellwanger, julgado pelo STF em 2003.
O escritor Siegfried Ellwanger Castan, negacionista do holocausto, foi acusado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul de praticar crime de racismo em razão da publicação de conteúdos antissemitas e discriminatório contra o povo judeu. Sentenciado pelo Tribunal de Justiça, recorreu ao STF, entretanto teve a condenação confirmada.
“O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica”, diz trecho da decisão do STF sobre o caso Ellwanger.
O crime de racismo, presente na Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, afirma que aquele que injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, será punido com reclusão, de dois a cinco anos. Em agosto de 2023, o STF equiparou ofensas contra pessoas LGBTQIA+ a crime de injúria racial.
“O contraponto da liberdade é exatamente a responsabilidade daquele que a exerce. Isso vem desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que diz que a liberdade é o poder que alguém tem de fazer tudo aquilo que não prejudique outra pessoa. Isso vale obviamente para liberdade de expressão, ou seja, desde que essa minha fala não prejudique, não viole o direito de outras pessoas”, diz o professor José Emílio Ommati, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
O STF lembra que a liberdade de expressão não dá o direito à prática de ilícitos (página 17), como discurso que incite a violência, discurso manifestamente difamatório, com juízo depreciativo e de injúria, e manifestações que causem perigo iminente ao sistema jurídico, democrático e ao bem público.
“Há um incentivo perverso para disseminação do ódio, da desinformação e das teorias conspiratórias. E muitas vezes se invoca a liberdade de expressão quando o que há é o interesse comercial de obter mais cliques, mais acessos, mais engajamento pela difusão do ódio”, lembrou o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, durante evento das agendas do G20, realizado neste mês no Rio de Janeiro.
O professor José Emílio Ommati lembra dos limites legais infraconstitucionais presentes no Código Penal, a exemplo dos crimes de injúria, calúnia e difamação.
Difamar alguém ao propagar informações falsas ou imprecisas, com o intuito de prejudicar sua reputação e imagem perante terceiros, segundo o artigo 139 do Código Penal, pode gerar detenção de três meses a um ano, além de multa. O crime de calúnia, por outro lado, está previsto no artigo 138 e consiste em culpabilizar falsamente a autoria de um crime para outrem.
O crime de injúria é enquadrado no artigo 140, e ocorre quando uma pessoa profere a outra um xingamento contendo algo desonroso ou ofensivo, atingindo a sua dignidade, honra e moral.
Em caso de imunidade parlamentar, a Constituição Federal, em seu artigo 53, afirma que “os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Por outro lado, a Jurisprudência do STF afirma que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa “ou que sejam proferidas em razão desta”.
Por causa desse entendimento, o STF decidiu rejeitar, em 2018, denúncia contra o então deputado federal Jair Bolsonaro por incitação ao racismo. A denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) afirmava que o parlamentar teria cometido crime de racismo em razão de falas numa palestra que fez no Clube Hebraica do Rio de Janeiro.
Segundo a visão do STF, a fala de Bolsonaro foi relacionada às funções parlamentares, “tendo sido proferidas sem conteúdo discriminatório, mas em contexto de crítica a políticas públicas, como as de demarcação de terras indígenas e quilombolas”.
O julgamento, que estava empatado em 2 a 2, teve a denúncia rejeitada justamente por Alexandre de Moraes, hoje visto como algoz por bolsonaristas. “Não me parece que, apesar da grosseria, do erro, da vulgaridade, do desconhecimento das expressões, não me parece que a conduta do denunciado tenha extrapolado os limites de sua liberdade de expressão qualificada, que é abrangida pela imunidade material. Não teria extrapolado, a meu ver, para um discurso de ódio, xenofobia ou incitação ao racismo”, afirmou Moraes.
Entretanto, há casos em que o STF reconhece que, mesmo diante da imunidade parlamentar, há limites quando se fala de liberdade de expressão, por exemplo em situações que incitem o cometimento de delitos ou para atacar a própria democracia ou o sistema representativo, “quando a imunidade for utilizada para a prática de abusos, usos criminosos, fraudulentos ou ardilosos”.
Liberdade de expressão em outros países
O uso da bandeira da liberdade de expressão por parte de bolsonaristas tem dado destaque ao modelo de pensamento norte-americano. O Judiciário nos Estados Unidos considera a liberdade de expressão mais ampla.
A liberdade de expressão, prevista na primeira emenda constitucional norte-americana, é hierarquicamente superior aos demais direitos, lembra o professor Fábio Calheiros do Nascimento. “A formação dos Estados Unidos historicamente é uma formação de país que ganhou independência prevalecendo autonomia que valoriza muito algumas questões”, reforça.
Por outro lado, diz o professor José Emílio Ommati, os EUA não devem ser vistos como “modelo na temática da liberdade de expressão”. A título de exemplo, em junho de 2023, a Suprema Corte norte-americana decidiu anular uma condenação de um homem que fez seguidas ameaças pelas redes sociais a uma cantora, com o argumento a favor da proteção constitucional à liberdade de expressão. Em outro caso julgado pela Suprema Corte, um homem foi absolvido em 1969 por defender perante audiência de televisão valores racistas da Ku Klux Klan.
“Eles [os Estados Unidos] são uma ilha em termos mundiais, porque todos os outros países democráticos do mundo, a começar pelo vizinho, o Canadá, regulam a liberdade de expressão”, afirma Ommati.
A liberdade de expressão no Brasil está mais alinhada aos sistemas legais da Europa, que têm um posicionamento mais firme contra o discurso de ódio, lembra o professor Fábio Calheiros do Nascimento. É o caso, por exemplo, do historiador revisionista inglês David Irving, condenado em Viena, na Áustria, por negar que houve perseguição aos judeus durante o holocausto.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em seu artigo 11, diz que “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras”.
O texto também reforça, por outro lado, que essa liberdade implica deveres e responsabilidades, “e pode ser submetida a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei”.
Fonte: A Lupa