Sob alegação de ‘desacato ao servidor público’ e ‘boca de urna’, a PM foi chamada. Dentro da escola, funcionários terceirizados e membros da direção utilizam camiseta com ‘vote sim’
Nesta segunda-feira (9), último dia destinado à consulta pública sobre o programa “Parceiro da Escola”, a PM (Polícia Militar) foi acionada contra professores, estudantes e lideranças de movimentos sociais que acompanhavam a votação no Colégio Estadual Professora Ubedulha Correia de Oliveira, zona Norte de Londrina.
O grupo resistente ao projeto, que pretende repassar a gestão de 177 escolas públicas para a iniciativa privada, foi impedido de entrar na escola, mesmo com as fortes e constantes chuvas que tem atingido Londrina nos últimos dias. Durante o pleito, e em cumprimento à diretriz estabelecida pela SEED (Secretaria Estadual de Educação) para a consulta pública, apenas a presença de um fiscal representando a APP-Sindicato (Sindicato dos Professores e Funcionários de Escola do Paraná) foi permitida.
Esta não é a primeira vez que o cerceamento ao debate acontece. Conforme informado pelo Portal Verdade, durante reuniões realizadas pela SEED nas sete escolas escolhidas para integrar o programa em Londrina e municípios vizinhos, representantes da APP-Sindicato e da sociedade civil foram proibidos de participar (relembre aqui).
Além da impossibilidade de apresentar suas dúvidas à pasta, os docentes não dispuseram dos contatos de pais e demais responsáveis para apresentar os motivos que levam a ser contrários à medida, a exemplo da falta de assistência especializada a estudantes com deficiência.
O texto (veja aqui) apresentado pelo governador Ratinho Júnior (PSD) e aprovado em caráter de urgência pela ALEP (Assembleia Legislativa do Paraná) em junho deste ano, não prevê nenhum tipo de atendimento individualizado para estes alunos.
Deste modo, as informações que chegaram à comunidade foram, majoritariamente, favoráveis ao programa, sem espaço para o debate e contestação.
“Nós estamos em frente ao Colégio porque não tivemos acesso à listagem, a nenhum contato com os familiares e alunos, então, fica muito difícil trabalhar nosso posicionamento. Estamos aqui para defender o ‘não’. A nossa possibilidade de conversar com alunos e familiares seria aqui na porta da escola”, diz Maria Giselda de Lima Fonseca, assistente social, coordenadora do Centro de Direitos Humanos de Londrina.
Maria Giselda foi uma das acusadas de “desrespeito ao servidor público” e “boca de urna” pela direção da escola.
“Nos surpreendemos porque para a Polícia vir tem que fazer algo de errado e na nossa avaliação, nós não fizemos nada, simplesmente estamos sentados na calçada em frente ao Colégio, temos esse direito e a viatura chegou só porque o aluno estava abordando outro”, explica a liderança que tem vinculação com o Colégio desde 1980, quando presidia a Associação de Moradores do Bairro Aquiles Stenghel.
O aluno que panfletava em frente ao Ubedulha é Abner Natan Borges Martins. Atualmente, ele cursa Técnico em Eletrotécnica no Centro Estadual de Educação Profissional Professora Maria do Rosário Castaldi. Apesar de sua escola não ter sido impactada pelo programa, Abner tem visitado os colégios selecionados para conversar com os demais estudantes.
“Eu estava aqui me posicionando contra o projeto Parceiro da Escola, abordando os estudantes que vieram para a consulta pública, conversando, apontando os malefícios da privatização”, compartilha.
Assim como o restante do grupo, o estudante não ingressou na escola, permaneceu na calçada abordando a comunidade. Além do Ubedulha, ele esteve no Colégio Estadual Doutor Willie Davids e no Colégio Estadual Nossa Senhora de Lourdes.
“A abordagem inicialmente foi tranquila, apesar de eu me sentir bem pressionado com a PM alegando que eu tinha que ir para a delegacia, falando a todo momento que eu deveria entrar na viatura. A gente está em um processo de consulta pública e é direito de qualquer cidadão se posicionar contra o projeto Parceiro da Escola ou qualquer outro projeto”, relata o estudante.
“Eu estava conversando com os pais e alguém da diretoria disse que eu não poderia fazer isso por estar fazendo ‘boca de urna’. E eu aleguei que eu iria continuar fazendo o meu trabalho, porque era um direito e continuaram falando que eu estava fazendo ‘boca de urna’ e que eu estava desacatando, mas em nenhum momento fui desrespeitoso”, ele complementa.
“Estamos em frente ao Colégio Ubedulha, pacificamente fazendo o nosso trabalho enquanto sindicalista, e do nada surgiu uma viatura falando que ia nos prender, policial até deu de dedo na minha cara e mandou eu entrar, e eu disse que não porque era um absurdo, não estava fazendo nada de ilegal. Eu disse para ela [diretora] que era muito feio o que estava acontecendo, que somos todos educadores e é uma vergonha isso acontecer na porta de uma escola. Eu culpo a SEED, o governador do estado do Paraná, a chefia do Núcleo Regional de Educação”, acrescenta Elisabete Eva Almeida Dantas, secretaria de Funcionárias e Funcionários da APP-Sindicato.
Na calçada não pode, mas dentro da escola funcionários usam camiseta
Apesar da direção sinalizar que o grupo estava “fazendo boca de urna” fora da escola, de acordo com imagens e relatos obtidos com exclusividade pela reportagem, funcionários terceirizados utilizaram camisetas com a mensagem “vote sim” dentro do Colégio.
“Chegando aqui foi uma grande surpresa encontrarmos funcionários terceirizados com a camiseta do ‘vote sim’ ficando na portaria o tempo todo. Se o estado quer fazer propaganda, que faça como nós, fora da escola e não induzindo as pessoas a votarem no sim”, ressalta Maria Giselda.
“No primeiro dia da consulta, membros da direção e todas as funcionárias terceirizadas estavam circulando pela escola com camisetas de ‘vote sim’, fizeram abordagem da comunidade durante o seu horário de trabalho, panfletagem”, reafirma Rogério Nunes da Silva, professor de Sociologia no Colégio Ubedulha e secretário de Assuntos Jurídicos da APP-Sindicato Londrina.
A consulta pública sobre o projeto ocorreu entre os dias 6, 7 e 9 de dezembro. Levantamento da APP-Sindicato indica que, em todo estado, das 177 escolas apenas 93 escolas atingiram o quórum. Destas, 82 rejeitaram o programa e somente 11 foram favoráveis. Outras 84 escolas sequer atingiram a votação mínima, sendo o Colégio Ubedulha um deles.
Rogério pontua que as acusações não possuem respaldo e visam mascarar a violência cometida contra as lideranças sindicais e representantes da sociedade civil.
“Estamos amparados pela Constituição, o artigo 5 assegura a liberdade de pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de organização política, ou seja, um conjunto de princípios constitucionais que foram violados por essa ação abusiva e truculenta da Polícia Militar em frente ao Colégio Ubedulha. O que se refere à boca de urna também não procede, porque nós estamos num processo de consulta pública, em um primeiro momento, a legislação eleitoral não incide”, explica o docente.
“Não caracteriza a boca de urna, as pessoas estavam na calçada, fazendo abordagem à comunidade, apresentando os motivos que nos levam a ser contra a privatização das escolas. Então, novamente, esse é argumento da ‘boca de urna’ e ‘desacato’ visa mascarar um conjunto de abusos e ilegalidades, que aconteceu no estado como todo e aqui no Ubedulha, infelizmente, se manifestou também”, ele acrescenta.
Ameaças de prisão, truculência policial e tentativa de direcionamento de votos marcaram os três dias de consultas públicas sobre a privatização da educação em escolas do Paraná. Na última quinta-feira (5), ou seja, na véspera de iniciar a votação, a SEED emitiu uma orientação para impedir manifestações contrárias à privatização nas proximidades das instituições de ensino. Em alguns colégios, faixas foram retiradas sob ordem da Polícia Militar.
“Estamos aguardando porque estamos indiretamente presos, nem eu e nem os demais podemos sair daqui enquanto não se resolver”, observa Maria Giselda.
Intimidação é frequente
Márcio André Ribeiro, professor da rede estadual e presidente da APP-Sindicato Londrina compartilha que a repressão também tem ocorrido nas demais escolas, o que para ele, não é uma “coincidência”.
“Não está sendo tranquilo em nenhum lugar, não tem com ser coincidência que nas sete escolas, as direções estejam agindo de forma tão pesada e truculenta. Temos certeza que ninguém agiria desta forma por opção pessoal. Esta forma nada democrática está levando a todas estas situações de conflito. Nós não tivemos acesso às documentações das escolas, as informações que a escola tem para ligar e chamar os pais para votar. É um processo que está muito longe da democracia e entendemos que só tem um responsável por tudo isso, o governo estadual”, adverte.
Ainda, de acordo com Rogério, a APP-Sindicato tomará as medidas judiciais cabíveis. “Vamos avaliar juridicamente e todas as medidas, primeiro na proteção das pessoas que sofreram um abuso, tanto a sociedade civil quanto as nossas lideranças. Também vamos ver quais medidas vamos tomar para tentar coibir e responsabilizar as pessoas que cometeram as situações de abuso”, assinala.
Os envolvidos chegaram a ser levados para dentro da escola a fim de serem ouvidos pelos policiais.
“Uma situação muito delicada, porque tem dois projetos, o do ‘sim’ e do ‘não’ e a democracia é isso, cada um defende o seu ponto de vista, o que acha que é certo. Achamos um crime privatizar o Ubedulha, mas eu não questiono ela [diretora] por apoiar o ‘sim’, apesar de para nós ser uma tragédia, ser o fim da escola pública, mas ela tem que entender e respeitar o nosso posicionamento”, aponta Maria Giselda.
Por envolver um estudante da rede estadual, a orientação da SEED à direção bem como da APP aos docentes foi de “apaziguar a situação”.
“Da mesma forma que ela [diretora] se sentiu ofendida, eu também me senti. Pediram que a gente apaziguasse para que não fique esse escândalo na frente da escola e as providências serão tomadas. Ninguém desacatou ninguém. Eu chorei em um momento, mas foi de vergonha mesmo por saber que somos todos educadores e querendo nos levar, também o pessoal da comunidade que está manifestando. Eu não fui ouvida, depois a direção mesmo disse que eu não estava envolvida naquilo que disseram que é desacato e eu vejo como abuso de autoridade. O policial chegou a me pedir desculpa porque realmente foi muito truculento”, finaliza Elisabete.
Franciele Rodrigues
Jornalista e cientista social. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Tem desenvolvido pesquisas sobre gênero, religião e pensamento decolonial. É uma das criadoras do "O que elas pensam?", um podcast sobre política na perspectiva de mulheres.