Com julgamento em curso no STF, Brasil pode ser o nono país da América Latina a descriminalizar ou legalizar o aborto
Movimentos de mulheres realizam, nesta quinta-feira (28), em todas as capitais brasileiras, manifestações pelo dia latino-americano e caribenho de luta pela legalização do aborto. As mobilizações acontecem menos de uma semana desde que o tema começou a ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF). Confira local e horário de concentração do ato em cada cidade.
Com um voto favorável da ministra Rosa Weber pela descriminalização do procedimento feito com até 12 semanas de gestação, o julgamento foi paralisado temporariamente para que siga em plenário físico, mas ainda sem data marcada.
Se a posição da ministra formar maioria, o Brasil vai se juntar a outros oito países da América Latina que permitem que o aborto seja realizado em qualquer circunstância, desde que feito até determinado período de gravidez.
Três deles – México, Colômbia e Argentina – viveram as mudanças recentemente, nos últimos três anos. Contando com o Uruguai, que legalizou o aborto em 2012, tais decisões legais fazem parte da chamada “onda verde” na América Latina, que, segundo a cientista política Beatriz Rodrigues Sanchez, seria “um avanço em direção à consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e pessoas que engravidam”.
Por isso, Sanchez considera que o Brasil vive “um momento crucial”. Pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde se dedica à análise comparativa sobre o tema na Argentina e no Brasil, Beatriz avalia que o país está em “um momento único: propício para que o debate sobre a legalização do aborto seja feito de forma ampla pela sociedade, tendo como referência o que tem acontecido nos outros países do continente”.
Onda verde
“Fica evidente que nos últimos anos, graças ao movimento feminista e à ação das mulheres organizadas, avançamos de maneira significativa nos direitos sexuais e reprodutivos. Um exemplo disso é que apenas uma minoria dos países em nossa região proíbe completamente o aborto”, avalia a chilena Carol Kariola, deputada pelo Partido Comunista em seu país e integrante da Internacional Feminista, organização fundada em abril deste ano no México.
Diferentemente das experiências uruguaia e argentina, onde a legalização foi decidida no Parlamento, na Colômbia e no México ela passou pelo judiciário, em órgãos equivalentes ao STF. Em todos os casos, no entanto, as votações tiveram placar apertado. No Uruguai e na Colômbia, a diferença foi de só um voto.
No México, a Suprema Corte descriminalizou o aborto no último 6 de setembro. A decisão avançou em relação a outra, tomada em 2021, que permitiu que os estados liberassem o procedimento.
Em fevereiro de 2022, foi a vez da Colômbia. Depois de oito horas de debate e com um placar de 5 a 4, o tribunal definiu que o aborto até a 24ª semana de gestação deixou de ser crime. A decisão foi fruto de pressão, entre outros, do movimento Causa Justa, que desde 2018 reúne 115 organizações e milhares de ativistas.
Atualmente, movimentos feministas batalham para que o acesso ao direito seja, de fato, garantido. “Os profissionais precisarão entender – e você sabe quão complicado isso pode ser na prática – que se o aborto está disponível, então o procedimento precisa ser respeitoso e de boa qualidade”, afirmou a colombiana Marta Jiménez, do Causa Justa, ao People Dispatch.
Antes de 2022, a interrupção voluntária da gravidez só era permitida na Colômbia nas mesmas situações em que são, atualmente, no Brasil. Quando a gravidez é resultante de estupro, a vida da gestante corre risco ou quando o feto tem diagnóstico de malformação grave – no caso brasileiro, especificamente anencefalia.
Foram as manifestações massivas de mulheres na Argentina, no entanto, que não só culminaram na aprovação da lei que no apagar das luzes de 2020 tornou o aborto legal, seguro e gratuito no país até a 14ª semana de gestação, como viraram o símbolo desta luta no continente.
Os lenços da luta
Inspirados nos lenços brancos das Mães da Praça de Maio, os que viraram a marca do movimento argentino pela legalização e foram adotados em outros países, não são de cor verde aleatoriamente. Integrante da Católicas pelo Direito de Decidir da Argentina e uma das idealizadoras do adereço, Marta Alanis disse ao Washington Post que o verde, escolhido pela primeira vez em um protesto em 2003, representa “crescimento, vida”, como um desafio aos movimentos pró-vida.
“Um dos elementos mais inspiradores da luta feminista na Argentina pela legalização do aborto foi a capacidade do movimento em promover uma ‘legalização social’ do aborto antes mesmo da aprovação da pauta no Legislativo”, relata Beatriz Sanchez.
“O tema do aborto passou a ser discutido em todos os lugares, o que teve um impacto significativo no posicionamento da opinião pública acerca do tema”, descreve a pesquisadora.
“A denúncia de casos de mulheres que morreram por fazerem o procedimento em condições precárias, enquadrando o tema como uma questão de saúde pública e não de direito penal, foi um dos fatores que fez com que pessoas que antes eram contrárias à pauta refletissem sobre a questão e passassem a defender a legalização”, conta Beatriz.
Feministas na Argentina apontam no entanto que, assim como acontece no Brasil nos casos restritos em que o aborto é permitido, as argentinas têm esbarrado em dificuldades para acessar o procedimento – mesmo sendo previsto em lei.
“Uma das principais barreiras é a questão da objeção de consciência, quando médicos se negam a fazer o procedimento alegando que o aborto seria contrário aos seus princípios individuais, sejam morais ou religiosos”, expõe Sanchez. “É inegável o avanço obtido com a aprovação da lei no país, mas a luta pela legalização do aborto ainda não terminou, trata-se de uma luta contínua”, conclui.
A “onda verde”, que começou em 2012 no Uruguai, marcou a retomada da legalização do aborto no continente depois de um hiato de 17 anos. Antes disso, a Guiana legalizou a prática em 1995, a Guiana Francesa em 1975 (seguindo a legislação da França), Porto Rico em 1973 e Cuba, em 1965.
Chile: “Estamos em situação de risco”
As ondas, no entanto, não vão todas na mesma direção. No Chile, no próprio 28 de setembro – mas de 2021 – a Câmara dos Deputados chegou a aprovar a descriminalização do aborto até 14 semanas de gravidez. Dois meses depois, no entanto, a lei voltou a ser analisada pelo plenário (por ter tido parte do texto adaptado para incluir pessoas trans) e aí, a posição mudou. Por 65 votos a 62, a lei foi rejeitada e arquivada.
Atualmente com o aborto permitido apenas em casos similares aos do Brasil, o Chile vive o risco de normas mais restritivas à interrupção da gravidez serem aprovadas. Isto porque o país está às vésperas de aprovar uma nova Constituição.
A substituição da Carta Magna, vigente desde os tempos de Pinochet, foi a forma como se canalizou a onda de manifestações que tomou o país entre 2019 e 2020, cujo estopim foi o aumento da tarifa do transporte. Há cerca de um ano, no entanto, o povo chileno rejeitou em plebiscito um texto constitucional elaborado por um organismo de representantes da sociedade civil.
Agora a nova proposta, que vai ser avaliada em novo plebiscito em dezembro, está sendo feita por um grupo de parlamentares majoritariamente de direita. No último 20 de setembro, este Conselho Constitucional criou um artigo que estabelece “o direito à vida” de quem “está por nascer”.
“Infelizmente, devido ao aumento da retórica da direita e extrema direita no nosso país, o Partido Republicano apresentou uma série de emendas constitucionais que buscam reverter a conquista deste direito, mesmo que em determinadas situações, para as mulheres no Chile”, narra Karol Cariola.
“Estamos em uma situação de risco e acredito que essa situação deve servir de alerta para os demais países da América Latina que conseguiram avançar e consolidar os direitos sexuais e reprodutivos”, atesta Cariola.
A Internacional Feminista, da qual a deputada faz parte, reúne parlamentares, acadêmicas e outras representantes de 30 países da América, Ásia e Europa. Com o objetivo, segundo o manifesto, de “promover uma agenda comum a favor da igualdade e de uma vida livre da violência sexista”, a organização está desenvolvendo um observatório de políticas públicas e uma escola de formação feminista.
“A interrupção voluntária da gravidez e a gestação são vistos pela Internacional Feminista como direitos fundamentais para a autonomia das mulheres, o direito de decidir sobre nossos corpos. Isso está relacionado com um de nossos princípios fundamentais porque acreditamos na plena liberdade dos seres humanos”, afirma Cariola.
Para a brasileira Tabata Tesser, das Católicas pelo Direito de Decidir, “Argentina, México e Colômbia são alguns dos países que já demonstraram ser possível ter uma legislação que não seja discriminatória e que possa acolher a decisão e a autonomia das mulheres com relação à gestação indesejada”. Por isso no Brasil, destaca, “o que tem nos movimentado é um sentimento de urgência”.
Fonte: Brasil de Fato