Reintegração de posse levanta críticas sobre falta de preparo do estado para atender mulheres vítimas de violência
Ao amanhecer desta quinta-feira (27), as mulheres abrigadas na Casa de Referência da Mulher Rose Nunes foram acordadas com uma operação surpresa. Cerca de 60 policiais executaram a ordem de reintegração de posse contra 10 pessoas que estavam no imóvel.
“Nós acordamos com a polícia na porta. Haviam mulheres abrigadas no local e uma delas chegou a ter uma crise de sofrimento psíquico devido ao susto de acordar com mais dezenas de policiais armados”, conta Heloísa Gusmão, estudante de Psicologia e acompanhante terapêutica voluntária na Casa Rose Nunes.
Luana Miranda, advogada da ocupação, afirma que o Ministério Público havia solicitado que a data da reintegração fosse divulgada com antecedência, por se tratar de uma ocupação coletiva que conta com a presença de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Segundo ela, o comando da tropa sequer autorizou que as ocupantes aguardassem a chegada da assessoria jurídica. Foi dado o prazo de 30 minutos para desocuparem o espaço.
“Também nos ameaçaram dizendo que se não saíssemos no prazo nossa inação seria compreendida como desobediência civil”, diz Heloísa.
Mesmo considerando uma ação ilegítima de reintegração de posse, as ocupantes saíram de forma pacífica do imóvel e não resistiram.
“As forças eram totalmente desproporcionais, sem resistência alguma e com pessoas em situação de risco e vulnerabilidade. Nosso objetivo maior é defender a vida dessas mulheres que já passaram por muitas violências durante a vida”, reforça Heloísa.
A Casa Rose Nunes atuava como um espaço de referência e acolhimento para mulheres em situação de violência e vulnerabilidade. Contava com uma rede de mais de 12 profissionais que prestavam trabalhos voluntários de advocacia, assistência social, psicologia, entre outros.
Cerca de 20 mulheres estavam sendo atendidas pela rede. A Casa prestava atendimento 24h, um dos poucos e talvez o único espaço que fornecia esse atendimento de forma efetiva na cidade de Curitiba.
As pessoas abrigadas no imóvel foram encaminhadas para o atendimento da FAS. “Sabemos que não haverá encaminhamento nenhum, porque os abrigos da FAS mal conseguem receber a população que eles se propõe a recolher. Sabemos que não há estrutura para acolher a mulher em situação de violência doméstica”, diz Heloísa.
Reivindicações e ocupação da prefeitura
Em seguida à reintegração de posse, os apoiadores da ocupação Rose Nunes, ao lado de movimentos sociais, partidos, organizações civis e políticas marcharam para a Prefeitura Municipal de Curitiba.
A coordenadoria do Movimento de Mulheres Olga Benário realizou uma reunião de negociação na prefeitura e apresentou uma carta de reivindicações que reforçam instrumentos importantes para a continuidade do atendimento que prestavam.
O movimento recebeu o retorno de que a Casa da Mulher Brasileira já possui atendimento 24h e já presta todos os atendimentos necessários para essas pessoas.
“Mas muitas das mulheres que foram atendidas na Casa Rose Nunes relataram que tentaram atendimento na Casa da Mulher Brasileira e não conseguiram acessar o local de madrugada sem o acompanhamento de advogados, o que limita muito o acesso”, conta Pietra.
Durante os protestos, dois manifestantes foram detidos na Prefeitura Municipal de Curitiba e encaminhados para a Central de Flagrantes. Eles estão sendo acusados de dano qualificado ao patrimônio público e lesão corporal qualificada.
Os apoiadores da Ocupação Rosa Nunes permanecem reunidos em frente à prefeitura e realizam uma vigília pela liberdade dos manifestantes detidos e pelo cumprimento das reivindicações solicitadas.
Atendimento digno às mulheres em situação de violência
O Paraná é o terceiro estado com o maior índice de feminicídio em 2023, segundo o relatório do Monitor de Feminicídios no Brasil, ficando atrás apenas de São Paulo e Minas Gerais. A média de feminicídios paranaense é seis vezes maior à média nacional.
A Casa Rose Nunes surgiu para denunciar esses números e a negligência do estado para com as mulheres em situação de violência doméstica. A ocupação era um lugar seguro para que elas tivessem um espaço de acolhida, tratamento, com atendimento psicológico, jurídico, assistência social em geral, para que o atendimento não se limite à delegacia.
“Quando precisei fazer um boletim de ocorrência por conta de uma situação de violência doméstica, o que mais escutei na delegacia foi que a minha rotina a partir de então seria ir toda semana naquele ambiente. Eu disse que não aceitaria isso para minha vida e por isso entrei para o Olga Benário, para lutar a favor da segurança das mulheres que sofrem esse tipo de violência”, reforça Heloísa.
O movimento reforça que os atendimentos prestados pelo estado não acontecem de forma rápida e muito menos qualificada, segundo eles as profissionais estão sobrecarregadas e as vítimas não possuem acesso a informações sobre todos os aparatos disponíveis para sua proteção.
“Eu mesma nunca vi divulgação sobre os meus direitos como mulher, só tive acesso a essas informações após me organizar politicamente. Mesmo tendo acesso a espaços privilegiados, essa informação não chegou até mim, imagina para as pessoas que vivem nas periferias”, reforça Pietra.
Elas relatam que várias pessoas que chegaram até a Casa descobriram que estavam em situação de violência e antes não sabiam pelo desconhecimento dos próprios direitos.
“O trabalho de educação, jurídica, psicológica, aulas de bolo de pote para educação financeira, por exemplo, é de extrema importância e foi negado pelo estado, mostrando de que ele está, defendendo a propriedade privada, sem função social nenhuma e colocando em risco a vida das mulheres”, afirma Heloísa.
A rede de atendimento já existia anteriormente à ocupação da Casa Rose Nunes, agora, a previsão é dar continuidade aos atendimentos e encaminhamentos de forma online, como era feito anteriormente.
“O Movimento Olga Benário continua forte e reivindicando o direito de continuar tendo um espaço justo e digno para as mulheres”, afirma Pietra.
Fonte: Brasil de Fato